A relevância do grantmaking: a experiência do Fundo Brasil de Direitos Humanos

 19 de junho de 2020 
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Por Débora Borges e Mônica Nóbrega

Este artigo tem por objetivo apresentar a atuação do Fundo Brasil de Direitos Humanos, posicionando o trabalho da fundação no campo da filantropia para a justiça social, e oferecendo justificativas e inspiração para a ampliação do grantmaking como mecanismo relevante para a promoção e a defesa dos direitos humanos no país.

A reflexão está baseada nos mais de 13 anos de trabalho do próprio Fundo Brasil, bem como na interação com outros fundos e redes, nacionais e internacionais, na busca por aprimorar e potencializar os impactos do grantmaking.

No Brasil, a Rede de Filantropia para Justiça Social reúne fundações comunitárias e fundos, com o objetivo de aprofundar o debate sobre a assim chamada filantropia comunitária – que se propõe a fortalecer as vozes e o poder das comunidades para possibilitar a construção de soluções próprias para os problemas que enfrentam – e sobre suas diferenças fundamentais em relação à filantropia tradicional. Um debate que, como explica a publicação Expandindo e Fortalecendo a Filantropia Comunitária no Brasil, de novembro de 2019, é feito a partir de uma perspectiva decolonial. Trata-se, portanto, de uma tentativa de “recuperar os saberes apagados e desvalorizados pela colonialidade” e de “empoderar saberes e comunidades vítimas da colonização e seus legados, e não de impor sobre elas uma epistemologia opressora” (p. 5).

Os entendimentos amadurecidos no âmbito da Philanthropy for Social Justice and Peace (PSJP) – rede internacional criada em 2007 que trouxe para o centro do debate de filantropia as fundações e fundos voltados para o apoio às iniciativas por justiça social e paz -, também reforçam a prática de aportar recursos para a defesa de causas nos campos dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável.

Desde a sua origem, o Fundo Brasil de Direitos Humanos foi pensado para apoiar organizações de base dedicadas à promoção e defesa dos direitos humanos. Criado por ativistas de causas diversas – terra e território, enfrentamento ao racismo, direitos das mulheres e dos povos indígenas, entre outras -, foi idealizado como uma estratégia para mobilizar recursos e destiná-los à promoção e à defesa dos direitos humanos no território nacional.

Ao mesmo tempo, pautas históricas das reivindicações sociais no país, bem como as que surgiram a partir do marco da Constituição de 1988, continuavam a impulsionar a expansão de múltiplas formas organizativas da sociedade civil, distribuídas por toda a imensidão do território brasileiro. Era preciso independência e autonomia aos pequenos grupos, coletivos, organizações de base, redes temáticas e indivíduos, em sua dedicação à defesa de direitos.

Neste sentido, o Fundo Brasil atua de forma estratégica no apoio à sociedade civil organizada para a luta por direitos. Capta recursos junto a diversos atores – como agências de cooperação e fundações internacionais e nacionais, além de indivíduos – e os destina a projetos que propõe ações coletivas voltadas à defesa e promoção de direitos humanos. Além disso, com amplo conhecimento do campo, das iniciativas, tendências e urgências pelo país, garante que o apoio chegue à ponta, com especial destaque para grupos que desenvolvem trabalhos fundamentais, mas têm pouco ou nenhum acesso a outras fontes de recursos. Impulsiona, ainda, a articulação, a formação ou consolidação de redes de atuação temáticas ou circunstanciais. Constitui também fundos de resposta rápida para apoio a emergências em vários temas e com pequenos recursos, como é o caso do Fundo de Apoio Emergencial: Covid-19.

O Fundo Brasil entende o grantmaking como uma ferramenta que traz para o centro do debate político uma pluralidade de proposições sobre quais são os direitos fundamentais da cidadania e como promovê-los e expandi-los. Ilumina pautas e estratégias locais, construídas a partir de saberes diversos e distintos entendimentos de país e de mundo. Democratiza a construção de um país mais igualitário, empoderando sujeitos, impulsionando o desenvolvimento comunitário e coletivo, fortalecendo vozes para que protagonizem suas próprias causas.

Cria, ainda, pontes entre grupos de base com afinidades de pautas ou interesses comuns, e destes com parcelas da sociedade interessadas em investir no desenvolvimento sustentável de coletividades por todo o país.

Desafios do contexto brasileiro

Não há dúvidas de que o setor da filantropia no Brasil está crescendo. No entanto, ampliar a prática do grantmaking, especificamente, ainda é um desafio de grande proporção. É preciso expandir a compreensão desta ferramenta como validação e impulsionamento das iniciativas autônomas da sociedade civil organizada, bem como o entendimento sobre a relevância disso para a construção de um país mais justo.

Também é necessário ampliar a atividade de grantmaking no Brasil, hoje ainda largamente dependente de recursos internacionais. Neste sentido, o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) trouxe uma boa notícia em seu Censo mais recente, lançado em novembro de 2019. O levantamento, com 133 respondentes, mostrou crescimento no percentual de entidades que fazem grantmaking: de 16%, em 2016, passaram a 23%, em 2018. Também aumentou a proporção de investimentos em projetos de terceiros, de 21%, em 2016, para 35%, em 2018. Deste grupo, 80% desenvolvem projetos próprios; eram 87% em 2016.

Sem dúvida é preciso fazer mais. O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD), de atribuição dos governos estaduais, ainda representa um entrave para o aporte de valores mais substanciais às iniciativas da sociedade civil; desta forma, desestimula a cultura de doação. A alíquota, progressiva, pode chegar a até 8% do total doado, cobrada, no caso do Estado de São Paulo, das doações acima de R$ 69.025,00, o equivalente a 2.500 Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (UFESPs), em 2020 estipulada em R$ 27,61.

Está em curso no Senado Federal uma Emenda Constitucional que pretende vedar a cobrança da alíquota de 4% a 8% sobre as transmissões e doações às organizações da sociedade civil e aos institutos de pesquisa sem fins lucrativos. Uma pesquisa do GIFE, em parceria com a FGV Direito SP, publicada no ano passado, constatou que apenas três países tributam doações a organizações sociais: Brasil, Croácia e Coreia do Sul.

A legislação desfavorável se estende à falta de um Marco Bancário da Doação, que impõe diversas dificuldades à realização de doações para as organizações sociais. E, por fim, somente no ano passado foi sancionada uma regulamentação específica para fundos patrimoniais e endowments no Brasil, ainda limitada a algumas áreas de atuação, mas que possibilita novas oportunidades para o desenvolvimento da filantropia no país.

Experiência prática: como fazemos

Conforme mencionado anteriormente, o Fundo Brasil foi criado por ativistas que conhecem profundamente o campo dos direitos humanos e a necessidade de fortalecer a atuação de grupos, coletivos e organizações formadas por defensoras e defensores de direitos. Instituído como uma fundação, o Fundo Brasil se organiza a partir de um sistema de governança que prevê alternância de poder e diferentes instâncias estabelecidas – atualmente, Conselhos Consultivo, de Administração e Fiscal, e Superintendência. Todas as instâncias, ao longo dos 13 anos de história da fundação, sempre foram compostas por integrantes de organizações sociais, grupos e coletivos relevantes na luta em defesa dos direitos humanos, em diferentes causas, de todo o país.

A principal forma de apoio do Fundo Brasil é realizada por meio de chamadas públicas, editais lançados anualmente que têm como público alvo organizações, grupos e coletivos em todo território nacional. Desde o primeiro edital, lançado em dezembro de 2006, o processo de escolha de projetos inclui um Comitê de Seleção independente, formado por ativistas do campo com amplo conhecimento de suas pautas e dos atores fundamentais aos seus temas.

O resultado das chamadas busca corresponder a uma diversidade regional, buscando contemplar ações de todas as regiões do país, e também à diversidade temática do campo dos direitos humanos, apoiando grupos que atuem no enfrentamento ao racismo, em defesa dos direitos de mulheres, crianças e adolescentes, juventudes, população LGBTI+, povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais, entre outros enfoques.

O edital é também um instrumento que permite mapear o campo e suas demandas em função do largo número de projetos recebidos. A chamada deste ano recebeu 2.000 propostas de todo o país. Por meio de análise e sistematização das iniciativas recebidas, a fundação consegue estar alinhada às demandas mais atuais do campo da defesa de direitos humanos. E, mais do que isso, é capaz de antecipar necessidades e movimentos para responder a elas. Um exemplo foi o edital Direitos Humanos e Desenvolvimento Urbano, de 2012, que apoiou com dois anos de antecedência a luta popular contra desapropriações e violações do direito à cidade no contexto das grandes obras para a Copa do Mundo de Futebol Masculino no Brasil (2014).

Em nome de preservar a capacidade de apoiar os grupos que estão realmente na ponta, no dia a dia do trabalho pelo fortalecimento da democracia, o Fundo Brasil assume riscos e aceita desafios. Desde o começo, a fundação apoia projetos de grupos, coletivos, redes e organizações de base não formalizados e sem CNPJ. Esta é uma postura política que afirma a confiança da fundação na capacidade dos grupos de base de protagonizarem suas causas e mudarem suas realidades, de criarem as estratégias mais efetivas para o enfrentamento às violações que se propõem a superar.

A afirmação de confiança continua nas etapas de prestação de contas. O relatório financeiro é simplificado e focado em descrição breve dos desembolsos feitos no âmbito da proposta apoiada, sem necessidade de apresentação de notas fiscais. Não quer dizer que o Fundo Brasil descuide dos recursos destinados aos grupos apoiados, ou que permita o mau uso destes recursos. Trata-se de outra metodologia aplicada à análise de resultados, que compara as atividades propostas, as narrativas daquilo que foi efetivamente executado e a adequação de todo o processo à descrição dos gastos feitos no âmbito do projeto. Tudo é feito de acordo com as exigências legais, com registros e informações submetidos a auditoria externa anual, que é realizada na instituição como um todo.

Da percepção e da experiência acerca da crescente relevância de incentivar e apoiar as articulações do campo surgiram os Editais Específicos, focados em um único tema definido a partir de reflexões internas da governança e da equipe da fundação sobre demandas identificadas no campo, como o já mencionado Direitos Humanos e Desenvolvimento Urbano e os posteriores Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, Juntos Contra a Violência que Mata a Juventude Brasileira e Enfrentando o Racismo a Partir da Base, entre outros.

O mesmo movimento levou à ampliação dos encontros, rodas de conversa e atividades formativas para os grupos apoiados. Hoje, além das visitas de monitoramento a projetos selecionados em todos os editais, a equipe do Fundo Brasil organiza e facilita encontros regionais, realizados em várias cidades pelo país, que se somam a um grande encontro nacional com todos os grupos apoiados no ano, realizado desde 2007. Estes encontros permitem a construção conjunta de análises sobre a conjuntura, os trabalhos realizados e as dificuldades enfrentadas, e ainda possibilitam que os grupos apoiados pensem coletivamente possíveis caminhos de soluções e estratégias de ações em parceria.

A força do apoio e da articulação

Um exemplo de projeto apoiado materializa resultados do conjunto de estratégias aplicadas pelo Fundo Brasil. Violações dos direitos das populações indígenas marcam a história do estado do Mato Grosso do Sul. A partir dos anos 70, o povo Guarani Kaiowá intensificou um processo organizativo que culminou na formação do movimento Aty Guasu (Grande Assembleia) para articular apoio mútuo na resistência a despejos e nas ações de recuperação de territórios para comunidades deste povo expulsas ao longo do século 20.

No começo da década de 2010, esse movimento, que durante a ditadura militar existiu quase clandestinamente, ganhou repercussão nacional. O Fundo Brasil apoiou consistentemente a articulação dos Guarani Kaiowá em uma série de editais. Os apoios ajudaram a consolidar a força da luta histórica desses povos.

Em 2012, com o apoio do Fundo Brasil, Tonico Benites participou ativamente da grande ação de comunicação que denunciou ameaças de despejo da comunidade Pyelito Kue, no município de Iguatemi. Uma carta de protesto dos indígenas foi publicada no Facebook – e deu início à grande onda de “sobrenomes” Guarani-Kaiowá nos perfis de brasileiros de todos os estados, que perdurou por meses. Protestos, aulas e rodas de conversa foram realizadas em dezenas de cidades pelo país. A defesa do território dos Guarani Kaiowá entrou no imaginário de brasileiras e brasileiros. E, embora os problemas não estejam equacionados, não saiu mais, até hoje.

Esta é apenas uma das experiências que demonstram o papel estratégico do grantmaking no fortalecimento da auto-organização e do protagonismo de populações na defesa de suas causas. Fundos e fundações que fazem grantmaking no Brasil, para além de apoiadores financeiros, são atores estratégicos, capazes de identificar iniciativas fundamentais e fortalecer a autonomia da sociedade civil.

Grantmakers como as organizações que se reúnem na Rede de Filantropia para a Justiça Social apoiam e potencializam a articulação de pessoas e comunidades, para que venham à tona suas visões de país e de mundo, suas estratégias de enfrentamento das exclusões, seu conhecimento. O grantmaking concretiza apoios com os olhos no futuro: mira lá na frente e ajuda a construir, coletivamente, os caminhos para um país mais justo.

Para saber mais

Leituras recomendadas

Para saber mais sobre o cenário atual da filantropia para justiça social no Brasil e filantropia comunitária, veja a publicação da Rede de Filantropia para Justiça Social.

Aqui, a reportagem completa O dia em que todo mundo virou Guarani-Kaiowá (Brasil de Direitos).

Sobre o ITCMD, aqui segue um panorama por Estado, feito pelo GIFE; o projeto de emenda constitucional que prevê isenção em doações para organizações sociais; e a publicação realizada também pelo GIFE, em parceria com a FGV Direito SP, Fortalecimento da sociedade civil: redução de barreiras tributárias às doações.

Aqui está o projeto de lei que pretende alterar o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) para Sistema Brasileiro de Movimentações Financeiras, possibilitando desenvolver instrumentos específicos para as organizações.

E, por fim, o livro Fundos Patrimoniais Filantrópicos – Sustentabilidade para Causas e Organizações, do IDIS – Instituto de Desenvolvimento de Investimento Social.