Durante uma década a Fundação Tide Setubal atuou pelo desenvolvimento das periferias com foco no Jardim Lapena, zona leste de São Paulo, nosso território de prática local.
A presença diária no bairro permitiu conhecer e reconhecer uma periferia potente, criativa e com capacidade de renovação e inovação. Por outro lado, reafirmou que a segregação entre centro e periferia reduz oportunidades sociais e econômicas para quem vive nessas regiões da cidade, destacando a importância de tê-las como prioridade no orçamento público e nas ações do investimento social privado e da sociedade civil, quando se pretende a busca pela equidade.
As periferias são múltiplas, com características que as aproximam, e diferenças que as tornam únicas. Por isso, a crença de que o território importa é uma diretriz em nossa atuação institucional.
Nesse sentido, a partir de 2017, a Fundação Tide Setubal inicia sua atuação para outros territórios com a perspectiva de conhecer e apoiar outras experiências de desenvolvimento e enfrentamento às desigualdades. Realizamos três passos importantes para estruturar a nossa operação de apoio e fomento às periferias:
- Diálogo com outros institutos e fundações que realizam apoios financeiros a pequenas iniciativas e projetos – realizamos um benchmarking para conhecer mais sobre alguns modelos de repasse de recursos praticados junto às iniciativas nas periferia e para entender melhor as possibilidades e os desafios para o campo da filantropia.
- Conversa com agentes periféricos, atuantes em diferentes territórios da cidade de São Paulo – esses encontros nos apresentaram uma série de possibilidades, nos mostrando a importância de não querer reinventar a roda, mas de aprender e aprimorar iniciativas que já foram desenvolvidas, assim como inovações e novos jeitos de fazer que vêm sendo experimentados a todo momento pelas periferias.
- Alinhamento institucional – como forma de organizar e ter uma operação de apoio mais estratégico para “fomentar iniciativas que promovam a justiça social e o desenvolvimento sustentável de periferias urbanas e contribuam para o enfrentamento das desigualdades socioespaciais das grandes cidades”, foram criadas 7 (sete) linhas de apoio e fomento às causas. São elas: 1. fortalecimento de organizações e redes periféricas; 2. fortalecimento de lideranças periféricas; 3. fortalecimento e divulgação de soluções para periferias; 4. desenvolvimento da prática local; 5. fomento à pesquisa; 6. mobilização de ISP e sociedade civil; 7. comunicação de causas. Ainda dentro da nossa estratégia de apoio e fomento a agentes e causas, foram criados dois caminhos possíveis para as doações. Um dos caminhos é de apoio institucional e execução de projetos que consideramos de caráter estratégico, desde que estejam alinhados com a nossa missão institucional. O outro caminho é por meio de editais e parcerias para fomentar iniciativas que estejam fora do nosso ecossistema, mas que passamos a ter contato em razão da estratégia de divulgação e seleção previamente definida.
Descobrimos, nas rodadas de conversa com parceiros e agentes das periferias, que a diversidade e equidade racial são temas transversais que aparecem em poucos editais de financiamento, evidenciando que há uma minoria de atores e fundações definindo questões de raça e gênero como prioridades. A partir desse dado e do desafio de criar oportunidades de desenvolvimento humano, social e econômico para quem vive nas periferias, definimos como uma de nossas estratégias o apoio às iniciativas que promovam a equidade de gênero e raça com o edital Elas Periféricas, além de fortalecer iniciativas inovadoras das juventudes e fomentar uma cultura empreendedora comprometida com mudanças efetivas nas periferias. Para quem quer saber mais sobre a temática, uma boa dica de leitura é o ISP por Equidade Racial, conteúdo em textos e vídeos produzido pelo GIFE.
Outro elemento importante identificado nessa construção é a mudança de olhar para os territórios periféricos. É inegável o desejo das fundações e institutos em contribuir com a transformação da realidade de territórios empobrecidos e negligenciados por políticas públicas efetivas. Mas, para transformar, é necessário apreciar as coisas que já acontecem nas periferias brasileiras. Reconhecer as potências e as inteligências desses lugares é o primeiro passo no caminho para uma construção de alianças e parcerias fortes. Na prática, deve-se criar canais de diálogos permanentes e contextualizados com lideranças periféricas, privilegiando o “fazer junto” e “fazer com” os territórios, em contraposição ao “fazer para”. Com a reafirmação de que o território importa, é fundamental reconhecer a especificidade de cada território para a promoção de ações para o fortalecimento de organizações, redes, lideranças e soluções das periferias de modo que se potencialize as narrativas das periferias urbanas e suas iniciativas territoriais.
Em minhas trocas e diálogos com os agentes periféricos, percebo que há muito tempo as periferias não desejam mais ser objeto de estudos para especialistas, por isso, é fundamental não dizer o “como” a periferia deve fazer, mas ter um olhar empático e verdadeiro para as formas como os agentes periféricos produzem as soluções para esses territórios. A liberdade de criação e a originalidade dos coletivos e organizações são princípios inegociáveis, por isso, é muito importante respeitar a autonomia e as formas de criação dos grupos. Garantir o espaço de fala e protagonismo dos agentes periféricos é um ponto de atenção na construção de novos programas e projetos. Alinhado a esse olhar, é fundamental na estruturação e a criação de modelos de apoio uma linguagem mais acessível, pois os fomentos via modelo de edital (tradicional) não são os que mais agradam a este público por entenderem que são modelos muito engessados.
É preciso inovar com iniciativas como o da Fundação Tide Setubal que, por meio do Matchfunding Enfrente, tem mobilizado as periferias de todo o país com soluções de enfrentamento do novo coronavírus, garantindo a autonomia, autoria, protagonismo e flexibilidade no fomento. O Matchfunding Enfrente nos trouxe a possibilidade de apoiar financeiramente iniciativas de organizações formalizadas e não-formalizadas (grupos e coletivos), ou seja, CNPJ e CPF, e tem nos conectado a diversas lideranças periféricas, diferentes inovações e redes atuantes em todo o país.
No artigo Novas narrativas para o investimento social e acesso a recursos nas periferias, os autores Cássio Aoqui e Diana Mendes dos Santos investigam e abordam os fatores críticos de acesso a partir da perspectiva de lideranças periféricas da cidade de São Paulo. Este artigo é um excelente ponto de partida para as fundações e institutos que desejam iniciar o relacionamento e a estruturação dos seus investimentos junto às periferias.
Seja qual for o modelo escolhido, fica evidente que a clareza da intencionalidade do apoio e do repasse de recursos às periferias precisa estar colocado desde o início da relação. No momento da estruturação das linhas de apoio, é importante ponderar que as organizações das periferias não almejam apenas recursos financeiros para execução de projetos. Muitas organizações demandam apoio técnico para a sustentabilidade e desenvolvimento institucional e isso precisa entrar na conta, considerado que as pessoas recebam recursos financeiros para que se evite a precarização da execução das iniciativas e para que possam construir uma narrativa empreendedora das suas ações.
No contexto atual, há uma boa oportunidade para o campo na transformação da relação com quem já foi beneficiário para o papel de parceiro, com capacidade de criação e execução de inovações e soluções, que podem começar localmente e ainda ganhar escala com apoio e articulação do investimento social privado. Em várias frentes de atuação e áreas temáticas com as quais estamos conectados existem redes estratégicas que precisam ser consideradas na criação de projetos e programas para o desenvolvimento das periferias e favelas para que contemplem ações coletivas, conexão com outras iniciativas, com outros territórios, promoção de intercâmbios e trocas com o objetivo de fortalecer as potências e trajetórias periféricas. O investimento social privado tem o poder de abrir portas e criar pontes para quem inova e faz coisas incríveis, diminuir as distâncias entre as redes, promover a visibilidade de agentes periféricos ao apostar em ideias disruptivas.
Por fim, e talvez, um dos pontos mais importante nessa curta reflexão: precisamos encontrar meios para aumentar a colaboração e diminuir a competição entre as organizações e iniciativas das periferias, muitas vezes criadas por meio dos editais tradicionais. Acredito que um caminho possível seja a ampliação de alianças entre os atores do investimento social privado articulados com diversos agentes, entre os quais as periferias e suas lideranças com os seus saberes e inteligências reconhecidos e tratados como autores e parceiros, não apenas como fonte ou objeto, na efetiva busca de soluções para os seus territórios.