Aprofundando a Conversa sobre a Importância de Confiar – Parte I

 21 de janeiro de 2022 
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Por Joana Lee Ribeiro Mortari

O que é confiança e como ela se desenvolve em nós?

 

“Nunca se doou tanto e nunca se falou tanto sobre doações no Brasil: o tema entrou na pauta de noticiários de todo o país, estampou capas de jornais e revistas. Para além dos números, as reflexões sobre como fazer grantmaking ganharam espaço e importância e temas como apoio institucional, confiança e grantmaking participativo se apresentam como fronteiras a serem superadas e aspectos a serem desenvolvidos” – Sistematização do 11º Congresso Gife – Fronteiras da Ação Coletiva (2020).

 

O desafio da superação da falta de confiança está registrado em reflexões do 11º Congresso Gife, em 2021, assim como nas duas edições da Pesquisa Brasil Doação, em 2015 e 2020, e, como não poderia deixar de ser, no documento de diretrizes do Movimento por Uma Cultura de Doação, intitulado “Por Um Brasil Mais Doador, Sempre” e lançado em 2020. Há, portanto, um reconhecimento coletivo do campo filantrópico de que desafios relacionados a confiança precisam ser endereçados. 

O que forma a percepção brasileira de desconfiança sobre a doação? O momento está pedindo que nos debrucemos sobre o assunto sob dois aspectos: o primeiro é um aprofundamento nas dinâmicas da confiança que nos permita sair da fase que estamos, a de reconhecer sua existência, e passar para a próxima, a de desenvolvermos habilidades práticas de como fazê-lo. O segundo aspecto é a investigação da formação da imagem de desconfiança que reconhecemos hoje, recontando e reconhecendo os eventos que a formaram, na história do Brasil e do mundo, para que possamos compreender e superar as dores do passado. 

Assim, a proposta deste artigo é que nos estiquemos para lugares mais amplos do que o campo da mudança social, começando pelo desenvolvimento da sociedade ocidental e dela para a filantropia brasileira, para que possamos formar uma imagem completa das dinâmicas que influenciam nossa habilidade de doar com confiança no Brasil e, a partir desta compreensão, conseguir muda-las. Desta maneira, mais do que novas ferramentas que nos digam como doar, a intenção aqui é que entendamos quais dinâmicas presentes em cada um de nós e na nossa sociedade podem estar inadvertidamente agindo sobre o doar. 

Seguimos, assim, a trilha proposta pelo 11º Congresso Gife em busca de novos paradigmas para a ação coletiva, conscientes de que um novo paradigma habita águas profundas e que é lá que precisamos chegar. E para criar espaço de reflexão e observação prática e trazer o conteúdo de maneira leve, esta proposta será em três partes: Parte I – o que é confiança e como ela se desenvolve; Parte II – Reconhecendo os desafios relacionados a confiança no pensamento moderno e do histórico latino-americano e Brasileiro, e Parte III – Caminhos para o Desenvolvimento da Confiança na Filantropia Brasileira.

O que é confiança e como ela se desenvolve?

Confiar tem sentido de acreditar nas intenções de alguém e, também, de atribuição de um fazer a alguém. A palavra vem do latim fidere que significa ter fé. Confiar é um exercício constante, algo que exercitamos diariamente e em inúmeras situações e que, dependendo do caso, exige de nós níveis diferentes de esforço e consciência. Quando eu aperto o interruptor de luz confio que ele irá acender e quando mando minhas filhas para escola, confio que estão recebendo uma educação que condiz com o que escolhi e acredito. A verdade é que eu não sei exatamente como a eletricidade chega na minha casa ou que acontece na escola, porque o mundo não é totalmente translúcido para mim. A primeira característica da confiança que temos que reconhecer é que confiar só existe e se faz necessário quando não enxergamos a totalidade da situação. Ou, em outras palavras, confiar não é saber.

Desta maneira, nossos sentidos estão a todo tempo fazendo leituras sobre as situações que se apresentam em nossas vidas, pessoais e profissionais, e avaliando, conscientemente ou não, o quanto é saudável confiar.  Da mesma maneira que nossas pernas precisam de musculatura para andar, nossa percepção de confiança requer que a exercitemos para que possamos confiar, para que nos permitamos caminhar em direção ao incerto. A segunda característica da confiança é que confiar é um exercício constante, não um estado de ser estático e, assim sendo, ela habita o lugar da relação. Eu preciso me relacionar com a escola, com a pedagogia escolhida, com o corpo docente e até a gestão escolar para me manter em confiança com o fazer da escola. 

Uma terceira característica da confiança, então, é que ela existe sempre em relação a algo ou alguém. Confiar é considerado um verbo transitivo indireto pois ele pede um complemento e este pode ser: coisas (o interruptor de luz), pessoas (o corpo gestor e docente da escola) ou ideias (a pedagogia escolhida). E ainda, quando confiamos em pessoas, focamos nossa confiança em três distintas características, conforme o caso: em suas intenções, nos compromissos por ela assumidos ou em suas capacidades (conhecimento técnico)¹.

Reflexões sobre Confiança e Transparência

No campo da cultura de doação, o confiar e a transparência se entrelaçam de maneira confusa. Dar informações para o mundo é iluminar nosso fazer interno, tornando-o visível para quem está de fora. Isto é importante independentemente de sermos organizações sociais, empresas ou poder público. A escuridão é, sem sombra de dúvida (notem o conceito expresso em idioma), um lugar de maior incerteza e dificuldade para o exercício da confiança.

De um lado, então, é pacífico que não queremos a escuridão, queremos poder ver dentro de organizações para nos ajudar a dar passos, a confiar. De outro, muitas vezes entendemos a transparência como caminho exclusivo para a confiança, como se o esforço para a confiança fosse do outro de se tornar translúcido, e não meu de exercitar minha musculatura.

Ao partirmos desse princípio, nossa musculatura da confiança fica flácida e, como sociedade, giramos em falso no desenvolvimento de forças construtivas da vida social. Como setor de mudança social, criamos desigualdade ao atribuir ao lado de menor poder (organizações sociais que recebem recursos e beneficiários finais) a responsabilidade exclusiva sobre o desenvolvimento da confiança eis que somente organizações maiores conseguem fazer tal investimento.

 

O desenvolvimento da confiança acontece no decorrer da vida. Quando pequenos aprendemos a confiar em nossas habilidades físicas (sentar, engatinhar, andar, falar), o que nos permite nos aventurarmos para cada vez mais longe dos nossos cuidadores. Os ritmos do começo da vida, quando bem cuidados pelos adultos ao nosso redor, nos ensinam a confiar de que o que precisamos para sobreviver nos será provido até que aprendemos, muito tempo depois, a conquistar nossa própria sobrevivência, hoje em forma de trabalho e dinheiro. 

Na infância, desenvolvemos as forças da imaginação, a “capacidade de atribuir forma a um mundo interior próprio” (BOS; 41) e é através delas que mais tarde conseguimos imaginar o universo interno de outra pessoa, a força formadora da empatia. Na adolescência, desenvolvemos a confiança no pensar ao ampliar nossas habilidades para o pensar analítico, lógico e abstrato e conseguimos por em cena o mesmo pensar que informa o mundo. Só mais tarde na vida desenvolvemos o segundo ciclo da confiança: a autoconfiança, a confiança em nossas habilidades profissionais e a compreensão de que precisamos confiar em outros para exercemos plenamente nosso papel no mundo. 

Através deste breve navegar sobre o desenvolvimento da confiança ao longo da vida é possível apreender a enormidade da tarefa contida em uma só palavra. Quando falamos ‘precisamos confiar mais’ estamos tocando em algo extremamente complexo e sagrado da vida humana. Ao mesmo tempo que confiar está contido no nosso desenvolvimento, ou em outras palavras, nos desenvolvemos naturalmente em direção ao confiar, inúmeros acontecimentos ao longo das diversas fases da vida podem formar feridas em nossa habilidade intrínseca de confiar. Estas feridas fazem parte da forma como nos manifestamos no mundo, e consequentemente de como doamos. 

O primeiro passo para o desenvolvimento de relações de confiança é reconhecermos, individualmente e organizacionalmente, como e quando confiamos ou deixamos de confiar a fim de não projetarmos no outro nossos medos. 

Próxima parte: Reconhecendo os desafios relacionados a confiança no pensamento moderno e do histórico latino-americano e Brasileiro.

 

¹ Bos, L. “Confiança, Doação, Gratidão: Forças Construtivas da Vida Social”. Ed. Antroposófica, 2010.