Estratégias de grantmaking: o caso do Fundo Agbara

 23 de agosto de 2023 
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Falar do Fundo Agbara significa, ao mesmo tempo, refletir sobre as consequências profundas do racismo, mas também a resistência, a busca por equidade e a memória e luta pela garantia de direitos do povo negro, principalmente de mulheres pretas. 

Sendo o primeiro fundo filantrópico de mulheres negras do Brasil, o Agbara elabora, executa e oferece programas que abarcam aportes financeiros, formações técnicas e ações de apoio formativo e emocional, fortalecimento e empoderamento para mulheres negras de todo o país visando a garantia, o acesso e o exercício pleno de sua cidadania e direitos econômicos.

O material a seguir, que conta o surgimento e os princípios que direcionam as práticas de grantmaking da organização, foi elaborado a partir de conversa com Rosana Cristina Rodrigues Fernandes, gerente-executiva do Fundo Agbara. 

 

CRIAÇÃO

Por conta de seu histórico de ativismo e mobilização social, Aline Odara começou a organizar, na região de Campinas, no Estado de São Paulo, ‘vaquinhas’ virtuais junto a pessoas próximas, para apoiar, mesmo que temporariamente, aqueles que mais precisavam durante a pandemia de Covid-19, que se revelaram, em sua maioria, mulheres negras. O aumento do número de casos de infectados, bem como a insegurança e medo de contaminação, fez com que aumentasse a demanda por apoio. 

A inviabilidade de organizar vaquinhas individuais para cada caso fez surgir a ideia de sistematizar essas mini campanhas de financiamento coletivo, buscando que um grupo de doadores pudesse, durante certo período, contribuir com um valor fixo simbólico para constituir um caixa, que serviria, então, para apoiar as mulheres negras mais necessitadas. 

Em poucos meses 600 pessoas estavam comprometidas a doar regularmente para o que viria a ser o Fundo Agbara, que surge, portanto, em um momento emergencial para apoiar a transformação socioeconômica de mulheres negras da região de Campinas. 

 

‘Força e potência’ 

O Fundo traz no nome um de seus principais propósitos. Agbara, em Yorubá (um dos mais de 250 idiomas falados na Nigéria e em outros países da África Ocidental) significa força e potência. Com essa escolha, a organização busca mostrar seu propósito de valorização e orgulho da história e da cultura afro-brasileira, honrando sua ancestralidade. O Fundo também expressa, em suas propostas e ações, uma das virtudes ligadas ao Orixá Ogum, do Candomblé: a inovação, sempre buscando desbravar caminhos.

 

A mulher negra enquanto base da pirâmide

Mulheres negras estão mais sujeitas a um cenário de postos de trabalho precarizados, menor acesso à renda, políticas de saúde precarizadas, maior índice de pobreza, entre muitas outras consequências que inviabilizam a plena vivência de direitos básicos. 

Atenta a esse cenário, a equipe do Fundo Agbara buscou, desde o início, estratégias para romper com esse sistema de precarização. Uma das primeiras respostas foi a promoção do acesso a direitos econômicos, para que, com as mínimas condições de vida garantidas – como a possibilidade de comprar alimentos e pagar suas contas –, essas mulheres pudessem buscar formas de ultrapassar os limites da sobrevivência e, com isso, começar a pensar em sua existência. 

 

Apoio emocional e formativo 

Por ter surgido próximo da base e manter esse contato frequente com mulheres negras, não demorou para que a equipe do Fundo Agbara percebesse que apenas o repasse de recursos financeiros não seria suficiente para apoiar as mulheres nas dificuldades sociais e econômicas que enfrentam diariamente. 

Notou-se a importância de um cuidado intencional com a saúde emocional e fortalecimento da autoestima desse público, para que pudesse, aos poucos, aprender a romper barreiras e crenças limitantes impostas pelo racismo estrutural, além da relevância de promover o acesso a formações e capacitações, de forma que essas mulheres conseguissem, de fato, sair de um emprego subalternizado, por exemplo, para concorrer a uma outra oportunidade ou comercializar seus próprios produtos. 

Nesse sentido, o Agbara busca incentivar que as mulheres conquistem três autonomias: econômica, intelectual e emocional, pilares indissociáveis que caminham juntos. 

 

Fazer com propriedade: a escolha pelo grantmaking enquanto fundo independente

“Em uma sociedade racista, não basta não ser racista. É preciso ser antirracista”. 

A frase de Angela Davis, filósofa, professora, escritora norte-americana e ativista pelos direitos de mulheres e da população negra, justifica a escolha do Fundo Agbara pelo repasse de recursos financeiros a mulheres negras.

Mesmo avaliando que outras organizações já realizam essa prática com foco étnico-racial, o grande diferencial do Fundo Agbara é ser uma organização de base, preta e afro-referenciada, com o foco na população negra, feita por mulheres pretas para mulheres pretas. 

A equipe compreendeu, portanto, que se posicionar como instituição grantmaker era uma escolha estratégica, uma vez que suas fundadores e outros membros têm essa proximidade e acompanham de perto as reais demandas e necessidades de mulheres negras, podendo, então, desenvolver uma prática de grantmaking diferente e inovadora, permitindo que esse público conseguisse, de fato, se identificar com a organização e seus propósitos.

A liberdade concedida pelo modelo de fundo independente possibilita alguns aspectos importantes, como um olhar cuidadoso e inovador para as transformações promovidas na vida das mulheres e a valorização de conquistas que não podem ser traduzidas em números.

 

Doa, mas também capta

Por ser um fundo independente grantmaker, o Fundo Agbara doa recursos, mas também capta. Por isso, busca colocar em prática algumas ações e também não compactua com determinados posicionamentos de parceiros e doadores. Confira: 

 

>> Boas práticas: 

– Alinhamento de valores; 

– Organizações abertas ao diálogo, com métodos flexíveis que aceitem trocas e cocriação; 

– Real compromisso com transformação social, racial e de gênero; 

– Relações que possam ser construídas e mantidas no longo prazo; 

– Processos facilitadores, com menos burocracia; 

– Relacionamentos de confiança; 

– Possibilidade de autonomia no uso de recursos. 

 

>> Práticas não-aceitas: 

– Manifestações racistas e discriminatórias, seja no trato com o Fundo Agbara ou na própria estrutura interna do parceiro; 

– Processos muito burocráticos e engessados; 

– Organizações sem espaço para cocriação. 

 

PRÁTICAS

 

Princípios que ditam as regras 

O Fundo Agbara conta com um conjunto de princípios muito nítidos que ditam as regras e a forma de atuação e relacionamento da instituição. 

  1. Antirracismo Enquanto um Fundo criado com o compromisso de transformar a realidade do racismo estrutural no país, o antirracismo é aplicado em todas as relações estabelecidas pelo Agbara, seja com investidores, parceiros, doadores e a sociedade em geral. A vinculação é feita somente com organizações com o compromisso de boas práticas verdadeiramente antirracistas.
  2. Acolhimento Por ter surgido da base e mantido esse contato, a equipe do Fundo compreende que é necessário manter um viés de acolhimento, sempre buscando entender e se adaptar às reais necessidades de mulheres negras, que não devem ser tratadas como uma ‘massa única’, mas sim a partir de um olhar de valorização de indivíduos com suas particularidades, trajetórias e histórias próprias. 
  3. Ancestralidade Expressa no nome do Fundo, a ancestralidade é a vontade da organização em honrar e valorizar trajetórias de mulheres negras, sua cultura e valores, o que é aplicado no nome dos programas, na comunicação e em diversas ações.
  4. Transparência Ética, responsabilidade e compromisso com a verdade são valores caros ao Fundo Agbara, que busca atualizar suas práticas e políticas regularmente.
  5. Colaboração e articulação em rede Atuar de modo colaborativo e manter o Agbara aberto à inovação são posturas adotadas pelo Fundo a todo momento, seguindo uma cultura agregadora, que tem como base a construção coletiva. 

 

Linhas de atuação 

O Fundo Agbara conta com três linhas de atuação: 

  1. Programas de inclusão socioprodutiva  
  2. Consultoria de diversidade e inclusão  
  3. Núcleo de Pesquisa da Mulher Negra  


1. Programas de inclusão socioprodutiva e as jornadas formativas 

Por entender que a necessidade de mulheres negras ia muito além de apoios pontuais, o Fundo Agbara passou a elaborar programas com jornadas formativas para ajudar na emancipação emocional e intelectual das participantes, bem como apoiar sua mobilidade socioeconômica. 

Independente do programa em questão, todas as jornadas formativas têm em comum o objetivo de, para além do grantmaking, que as mulheres participantes possam, depois da formação, gerar mais recursos, ampliar as receitas de seus projetos e empreendimentos para, a partir disso, de fato promover essa transformação socioeconômica. 

 

>> Método de inscrição 

O Fundo Agbara optou por adotar a chamada pública enquanto método de inscrição para seus programas. As colaboradoras do Fundo podem indicar mulheres ou organizações para participar da seleção, além de também receberem indicação e realizarem busca ativa se compreenderem que a chamada pública não está alcançando determinado público ou região, como iniciativas de mulheres transgêneras, por exemplo. 

Entretanto, todas as potenciais apoiadas devem realizar suas inscrições e passar pelo processo de candidatura e matriz avaliativa, para que não haja favorecimento de alguma indicação ou participante. 

 

>> Processo seletivo e matriz avaliativa 

Podem participar dos processos seletivos das chamadas públicas do Fundo Agbara: mulheres negras (pardas ou pretas), cisgêneras ou transgêneras, com pelo menos 18 anos, de qualquer nacionalidade, residentes em qualquer cidade do Brasil, com uma iniciativa de geração de renda com, no mínimo, um ano de existência e o desejo de promover o desenvolvimento institucional dessa iniciativa. 

Todas as chamadas públicas possuem formulários específicos. Depois de encerrado o período de inscrições, as candidaturas passam por uma análise inicial onde são avaliados os pré-requisitos eliminatórios de cada chamada. As propostas aptas passam para a fase seguinte, em uma análise a partir da matriz de avaliação do Fundo, com critérios específicos para análise de impacto, de resultados positivos e de mudanças socioeconômicas, isto é, um processo para avaliar o potencial de desenvolvimento, de inovação e comprovação das atividades. 

Além disso, a matriz avaliativa também conta com análises de interseccionalidades, isto é, um olhar cuidadoso para aspectos que colocam as mulheres negras em maior posição de vulnerabilidade, como é o caso de mulheres com mais de 50 anos, pessoas com deficiência (PCDs), pessoas LGBTQIAP+, mães solo e mães solo com mais de três filhos e egressas do sistema penitenciário. Por fim, o Fundo estabelece cotas por regiões do país, a fim de garantir multiplicidade de perfis, narrativas, valorização de trajetórias e intercâmbios culturais. 

As mulheres/iniciativas selecionadas também passam por uma entrevista com a equipe do Fundo, com o objetivo de entender o ponto de partida da participante, em um processo de acolhimento e compreensão de suas trajetórias e objetivos. Nessa etapa, o Agbara avalia o potencial de desenvolvimento da mulher e de sua iniciativa, entendendo algumas variáveis como realidade de vida e do território no qual está inserida e outros aspectos que a cercam.

 

>> Envolvimento da equipe 

Se antes toda a equipe do Fundo Agbara participava do processo de seleção de iniciativas, com o passar do tempo foram sendo definidos critérios e processos mais padronizados. 

Atualmente, a equipe de programas é responsável por operacionalizar a maior parte das etapas de triagem, utilizando a ferramenta Matriz de Seleção, os marcadores da Matriz de Decisão e a classificação de pontuações adicionais (perfis em maior vulnerabilidade). 

Após a triagem, chega-se a um quantitativo reduzido de candidaturas. Na etapa seminal, as organizações passam por entrevistas com membros da equipe Agbara, geralmente das áreas executiva e de programas, com o objetivo de compreender o ponto de partida da participante e o potencial de desenvolvimento da mulher e de sua iniciativa, em um processo de acolhimento e compreensão de suas trajetórias e objetivos.

Por fim, há um comitê final composto pelas pessoas participantes do processo e equipe de gestão do Agbara, que analisa a classificação final e apontamentos registrados nas entrevistas e delibera as organizações finais.

 

>> Acompanhamento 

O acompanhamento das mulheres e iniciativas apoiadas pelo Fundo Agbara se dá por um sistema de formulários, com indicadores específicos para compreender a evolução de cada caso.

O Fundo Agbara faz uso de elementos do questionário de inscrição e das entrevistas iniciais para coleta de dados e compreensão do estágio das iniciativas antes de serem apoiadas pelo Fundo. 

Durante a realização do apoio, são aplicadas avaliações após todas as formações e coleta de dados sobre engajamento na plataforma das formações online, com o objetivo de mensurar o desempenho das participantes durante a jornada e realizar eventuais ajustes. Depois das mentorias, por exemplo, também são coletados depoimentos tanto das mentoradas como das mentoras.

A organização também realiza um processo de avaliação final seis meses depois do encerramento do programa para identificação do estágio atual e análise comparativa das variações e estágio de desenvolvimento das iniciativas e lideranças negras.

Em muitos casos, as mulheres ainda permanecem próximas ao Agbara por integrarem a Rede de Mulheres Agbara, o que também facilita seu processo de acompanhamento durante os encontros, nos quais a equipe do Fundo também aplica avaliações e pesquisas de satisfação para entendimento sobre o nível de engajamento, identificação de temas e oportunidades de novas formações. 

 

>> Relacionamento com apoiadores 

O Fundo Agbara acredita na importância de um relacionamento próximo e transparente com seus apoiadores. Por isso, investe em diferentes tipos de comunicação e articulação, para não só manter a proximidade, mas também com o objetivo de reportar os resultados obtidos pelos programas. 

O Fundo Agbara: 

  • Realiza reuniões periódicas; 
  • Participa de eventos promovidos por organizações apoiadoras; 
  • Convida a participação dos apoiadores em eventos, atividades e formações promovidas pelo Fundo Agbara;
  • Investe em comunicações por e-mail; 
  • Envia relatórios após a finalização dos programas e relatórios de resultados e impactos semestrais e anuais.

Além disso, por ser um próprio captador de recursos, visto que é um Fundo, o Agbara também investe em algumas ações, posicionamentos e diretrizes que ajudam na hora de captar recursos. São elas: 

  • Participação de plataformas nacionais e internacionais de captação; 
  • Realização de prospecção ativa de contatos e potenciais parceiros e investidores; 
  • Realização de curadoria de organizações, agendas globais, eventos e atividades para que o Fundo esteja presente, apoie ou pratique incidência; 
  • Aplicação em editais; 
  • Realização de campanhas próprias ao longo do ano. 

 

2. Outras frentes

Além da frente dedicada exclusivamente ao grantmaking, o Fundo Agbara conta com outras duas linhas de atuação. Uma delas é a consultoria de diversidade e inclusão, com a promoção de serviços de consultoria de diversidade e inclusão, principalmente para empresas e organizações do setor privado, apoiando o desenvolvimento de práticas antirracistas.

A outra é o Núcleo de Pesquisa da Mulher Negra. Ainda em fase de desenvolvimento, o Núcleo tem como objetivo auxiliar na geração de dados e informações estratégicas que ajudem o setor público com dados para a criação e a definição de políticas públicas voltadas aos direitos de mulheres negras, bem como o setor privado para adoção de práticas que olhem diretamente para esse público.

O Fundo Agbara também conta com outras iniciativas recorrentes voltadas à promoção dos direitos das mulheres negras, relações étnico-raciais, políticas públicas, enfrentamento da violência e justiça social, como as Jornadas Antirracistas, eventos online e gratuitos com a participação de especialistas e parceiros do Fundo para discutir o pensamento antirracista com a sociedade como um todo, o Festival Agbara da Mulher Negra, que promove um diálogo e valorização da cultura, bem-estar e conhecimento da pauta étnico-racial e afro-brasileira de forma ampla, além de ações de advocacy relacionado a pauta étnico-racial.

 

APRENDIZADOS

Três anos depois da criação e estruturação do Fundo Agbara, que surgiu inicialmente de uma situação emergencial e deu continuidade à sua prática por entender uma janela de atuação de uma organização formada por pessoas negras para apoiar pessoas negras, a equipe soma alguns aprendizados com a experiência. Confira a seguir os destaques:

 

>> Linguagem simplificada 

Ao longo do tempo, o Fundo Agbara teve relatos de mulheres que não se inscreviam em editais por entenderem que aquelas iniciativas não eram para elas. Simplificar processos, desde a forma de divulgação de uma chamada pública, até a disposição das regras de participação, foi um aprendizado importante para a equipe, de forma que todas as mulheres se sentissem pertencentes. 

 

>> Desburocratização 

O Agbara compreende que processos complexos, excessivamente burocráticos e demandantes contribuem para afastar mulheres negras e colocar sobre elas uma pressão que potencialmente fará com que se sintam incapazes e inaptas. A ideia, portanto, é estabelecer parcerias com organizações que entendem a importância de mecanismos facilitados e simplificados. 

 

>> Resposta às necessidades que surgem 

A equipe do Fundo tem notado, por exemplo, a presença de mulheres com câncer nas últimas turmas de seus programas, o que acendeu o alerta para a elaboração de respostas e soluções às questões que surgem em cada turma das chamadas públicas. Por se tratar de grupos de mulheres diferentes, muitas vezes de várias regiões do país, com seus próprios costumes, é necessário que o Fundo sempre esteja aberto e disposto a ouvir as necessidades e, eventualmente, promover adaptações para possibilitar a continuação da participação daquela mulher. 

 

>> Adaptabilidade: ouvir as demandas 

Conectado ao aprendizado anterior, ter disposição para ouvir as demandas das mulheres de cada turma se mostrou fundamental ao longo do processo. É possível que o grupo de uma determinada chamada pública demande atividades presenciais e outro grupo não. Nesse caso, o Fundo Agbara alinha individualmente com cada um como será o programa a ser desenvolvido. 

 

>> Mensuração e matriz de avaliação

O formato de seleção e avaliação das mulheres, organizações e iniciativas evoluiu ao longo do tempo. A organização foi aprimorando o formato de seleção com perguntas e critérios mais específicos, que ajudam a identificar a potencialidade de cada caso. O formato de aplicação das entrevistas iniciais também passou por uma evolução, com a definição do melhor momento para essa conversa entre o Fundo e a apoiada. 

 

>> Equilíbrio

Apesar de ser guiado pelo fio condutor da inovação, o Fundo Agbara atua de forma humanizada, com o objetivo de não perder a conexão com as mulheres negras que atende ou com sua equipe. Com isso, a ideia é unir inovação com ancestralidade e profissionalização, sempre valorizando a conexão emocional e o desenvolvimento das mulheres e suas iniciativas.