Estratégias de grantmaking: o caso do Instituto Ibirapitanga

 15 de fevereiro de 2023 
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Criado em 2017 como uma organização dedicada à defesa de liberdades e ao aprofundamento da democracia no Brasil, a trajetória do Instituto Ibirapitanga se difere da história de outros institutos e fundações com características semelhantes. 

O cineasta Walter Salles e seu irmão e documentarista, João Moreira Salles, vivenciaram, durante aproximadamente dois anos, um processo de aprendizado para conhecer mais a fundo o trabalho de organizações da sociedade civil (OSC) e a natureza da filantropia no Brasil. Ao final desse período, fundaram os Institutos Ibirapitanga e Serrapilheira. 

À frente da concepção do Ibirapitanga, Walter Salles estudou causas que encontravam ressonância com suas preocupações pessoais e analisou o cenário atual do Brasil em busca de agendas nas quais um instituto de caráter doador tivesse maior potencial de contribuição.

Confira a seguir o percurso de criação do Instituto, suas práticas e escolhas quando o assunto é apoiar e incentivar o avanço de agendas socioambientais no país. O material foi elaborado a partir de conversa com Andre Degenszajn, diretor presidente do Instituto Ibirapitanga.  

 

CRIAÇÃO

A vontade por uma contribuição sistemática em causas e agendas socioambientais no Brasil foi a principal motivação para a fundação do Instituto Ibirapitanga. 

A organização foi fundada em 2017 por uma vontade do cineasta Walter Salles em criar algo mais significativo em termos de instituição que pudesse contribuir com causas socioambientais, uma vez que já realizava apoios mais pontuais e menos sistemáticos. Desde então, o Instituto opera com recursos próprios a partir dos rendimentos de um fundo patrimonial. 

Algumas características pessoais de Walter Salles ajudam a explicar o caminho percorrido pelo Instituto. Apesar do desejo de criar uma organização para reunir ações de investimento em desafios e agendas importantes para o Brasil, não havia uma causa definida de antemão, já que o doador nunca se percebeu como um filantropo. Walter Salles acreditava que o Ibirapitanga não deveria ser um reflexo de seus desejos e interesses pessoais, mas que, a partir de seu trabalho, encontrasse questões pertinentes e relevantes em uma área na qual pudesse produzir contribuições significativas. 

 

Jornada de aprendizado 

Partindo da motivação compartilhada em realizar investimentos mais estruturados, Walter Salles e seu irmão, o documentarista João Moreira Salles, passaram por um período de aprendizado de cerca de dois anos, quando conheceram experiências, organizações, fundações e associações dentro e fora do Brasil. 

A dupla transitou por diversos espaços e organizações, como o GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), e conheceu pessoas como Andre Degenszajn, atualmente diretor presidente do Instituto Ibirapitanga, e Ana Toni, que, por meio da Gestão de Interesse Público Pesquisa e Consultoria (GIP), estruturou diversas conversas e reuniões para que os irmãos pudessem compreender um pouco mais sobre o ambiente da sociedade civil e da filantropia. 

Em sequência a esse processo, Walter Salles procurou Andre para apoiá-lo na estruturação do que viria a ser o Instituto Ibirapitanga, enquanto João Moreira Salles seguiu com a criação do Instituto Serrapilheira, dedicado a apoiar o desenvolvimento da ciência no Brasil. 

 

Imaginação institucional 

A primeira etapa de elaboração do Instituto foi chamada de imaginação institucional, um período de conversas iniciais para explorar questões gerais de interesse do doador e discutir o perfil geral da organização que seria criada. 

Nessa fase, já com a participação da Iara Rolnik, que viria a assumir a posição de diretora de programas do Instituto Ibirapitanga, foram feitas doações quase que experimentais, antes que o Instituto fosse de fato consolidado e suas estratégias programáticas definidas. Essa foi uma forma de gerar aprendizado conforme o processo se desenvolvia.

Uma das poucas definições de partida trazidas por Walter foi a escolha do nome Ibirapitanga. A palavra tem origem tupi-guarani e é uma das nomenclaturas do pau-brasil. ‘Ybirá’ significa pau ou árvore, e pitanga, vermelho, uma referência à coloração do cerne do seu tronco, utilizado no tingimento de tecidos, e faz alusão à retomada de uma identidade própria do Brasil a partir da ibirapitanga, algo originário do país e expropriado pelos colonizadores.

Seja pelas suas qualidades, seus usos ou sua ausência, a ibirapitanga traz na sua história as marcas da construção do Brasil. Como destaca o escritor Eduardo Bueno no epílogo de Pau-brasil (2002), ela seria “a metáfora mais bem acabada, mais perfeita e mais pertinente dos recursos naturais do Brasil; o símbolo botânico da usurpação de nossa cidadania e de nossa própria omissão ao longo do processo”.

O Instituto Ibirapitanga é, então, criado em 2017 como uma organização dedicada à defesa de liberdades e ao aprofundamento da democracia no Brasil. 

 

Por que ser grantmaker

Foi nessa fase de imaginação institucional, antes mesmo de definir as estratégias programáticas do novo instituto, que ficou decidido que o Ibirapitanga se constituiria como uma organização doadora (grantmaker). 

A opção foi por apoiar organizações, movimentos e coletivos da sociedade civil brasileira que desejam produzir transformações estruturais positivas no país. 

Assim, a escolha por realizar doações se dá a partir da visão de transformação que a equipe do Instituto tem, a qual defende que a sociedade brasileira conseguirá lidar com problemas e desafios estruturais à medida que contar com organizações da sociedade civil fortalecidas, colaborando e interagindo entre si, formulando suas próprias teorias de mudança, construindo coalizões e estratégias de enfrentamento e exercendo controle social sobre o governo. 

Outro ponto que contribuiu para a escolha foi a percepção de que potenciais soluções para desafios socioambientais encontram-se muito mais em organizações que atuam nos territórios ou na linha de frente do que nos financiadores. Nesse sentido, é necessário ativar esses conhecimentos, provocar as organizações e estimular o trabalho. 

Entretanto, é válido ressaltar que o papel de um doador não é algo distanciado, mas sim uma interação com as organizações atuantes em um processo de reconhecimento de ativos, capacidades e conhecimentos da sociedade civil, o que, por sua vez, possibilita a alocação de recursos e estabelecimento de diálogo para enfrentamento coletivo de problemas que, na maioria dos casos, não são solucionáveis apenas por uma iniciativa ou organização. 

 

Definindo a atuação: a importância do potencial de contribuição  

Mesmo que não tivesse uma única causa orientadora, a estruturação do Instituto precisava de um ponto de partida. Por isso, diversas conversas foram realizadas inicialmente para entender quais, dentre as diversas causas que mobilizavam o doador, poderiam se constituir como um programa consistente, relevante e viável.

Mais do que observar a relevância dos temas, considerando a impossibilidade de elencar em ordem de importância as agendas socioambientais, foram consideradas as áreas nas quais o Instituto poderia trazer contribuições mais significativas, o que também incluía observar a existência ou não de um campo de trabalho promissor, a demanda de atuação na área em questão, o sistema de financiamento, as redes estabelecidas, entre outros pontos. 

Uma linha que foi definida com certa rapidez foi a de equidade racial. Já a outra frente de ação surgiu, de início, orientada à redução no uso abusivo de agrotóxicos. Por ser uma área ainda pouco consolidada, foram pesquisadas organizações e especialistas para que a equipe analisasse a viabilidade ou não de um programa a partir deste campo. Depois de um período de estudos, foi definido o recorte de apoio à construção de sistemas alimentares justos, saudáveis e sustentáveis. 

A atuação do Instituto é organizada, então, em dois programas: Sistemas alimentares e Equidade racial, cada qual com três linhas prioritárias para apoio a iniciativas.  

As duas áreas foram escolhidas pela equipe por considerarem ambas definidoras para o desenvolvimento do país e para sua inserção internacional. São agendas críticas para definir a qualidade da democracia brasileira, para a redução das desigualdades e para limitar os impactos sobre o clima e a saúde das pessoas.

 

Processos participativos 

Todo o processo de definição das estratégias programáticas e áreas de atuação do Instituto Ibirapitanga foi participativo. 

O processo de definição das duas frentes de atuação foi acompanhado por diálogos com mais de 100 atores e organizações em cada uma das áreas para compreender as questões, reconhecer os desafios, dilemas e oportunidades de incidência, além de começar o processo de construção de legitimidade do Instituto. 

Esse é um dos momentos centrais que marca o início da trajetória do Ibirapitanga. Se na etapa de imaginação institucional havia sido definida a criação de um Instituto para apoiar OSCs, a equipe entendeu que um dos primeiros passos desse processo deveria ser uma ampla escuta de integrantes do setor, com o objetivo de compreender como eles percebem os desafios e soluções possíveis e o potencial de contribuição de um novo instituto como o Ibirapitanga. 

A experiência foi fundamental, pois permitiu conhecer mais sobre os temas e iniciar um campo de relacionamento para a nova instituição. Nesse processo, o Instituto contou também com o apoio e contribuição de especialistas para ajudar a estabelecer o contorno da estratégia em cada uma das áreas.

Na frente de Equidade racial, participaram Sueli Carneiro, filósofa, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora executiva do Geledés Instituto da Mulher Negra, e Denise Dora, advogada, defensora de direitos humanos e diretora regional da Artigo 19, organização internacional que defende a liberdade de expressão e informação. Já na frente de Sistemas alimentares, colaborou Ricardo Abramovay, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Atualmente, os três integram, juntamente com Walter Salles e outros profissionais, o conselho de administração do Ibirapitanga.

As conversas com os especialistas foram seguidas de dois encontros com ativistas e pesquisadores para momentos de imersão, que deram origem às duas primeiras publicações do Instituto Ibirapitanga, seguindo seu princípio de sistematização, produção e divulgação de conhecimento sempre que possível. 

 

PRÁTICAS

Programas e linhas prioritárias 

O Instituto Ibirapitanga organiza sua atuação em dois programas: Sistemas alimentares e Equidade racial. 

O primeiro, com o objetivo de contribuir para a construção de sistemas alimentares saudáveis, justos e sustentáveis, conta com as seguintes linhas prioritárias: 

  • Abordagens sistêmicas sobre alimentação; 
  • Alimentação e saúde;
  • Transição para sistemas alimentares sustentáveis. 

Já o programa Equidade racial, ao reconhecer o racismo como elemento estrutural das desigualdades no Brasil, apoia iniciativas nas linhas prioritárias: 

  • Ampliação da representatividade simbólica e política da população negra;
  • Consolidação das iniciativas de ação afirmativa;
  • Fortalecimento de movimentos antirracistas. 

Apesar de ter programas e linhas definidas, não se tratam de medidas imutáveis. As linhas prioritárias do programa Sistemas alimentares, por exemplo, foram recentemente reformuladas. Os parâmetros, portanto, devem ser revistos sempre que necessário para que possam dialogar com o contexto e o cenário atual, possibilitando, inclusive, uma eventual incorporação de novas temáticas. 

 

Submissão simplificada 

Enquanto uma instituição grantmaker, o Instituto prioriza parcerias com iniciativas que dialogam com suas prioridades e linhas programáticas, que são selecionadas por meio de: identificação direta (carta-convite) ou editais específicos, ambos via apresentação de propostas por meio de seu sistema de gestão de doações. 

Um diferencial da prática do Instituto é a abertura permanente a propostas não solicitadas: a todo momento, qualquer organização que desejar submeter uma proposta ao Ibirapitanga pode fazê-lo via site, mesmo que não conheça ninguém da equipe do Ibirapitanga para intermediar o processo.  

O Instituto também optou por criar um processo de submissão simplificada das iniciativas para financiamento. Na primeira etapa, as interessadas devem preencher uma carta de intenção, que consiste em um documento mais curto, apenas para que o Instituto possa compreender aspectos básicos da organização, bem como linhas gerais do projeto. Caso essa tenha alinhamento com a estratégia e se houver a possibilidade de apoio, a proponente é convidada a apresentar uma proposta completa e detalhada, que então é avaliada internamente. 

Em alguns casos, a ideia apresentada inicialmente encontra ressonância junto ao Instituto, mas ainda precisa ser melhor desenvolvida. Nessas ocasiões, o Ibirapitanga realiza um processo de diálogo com a organização para refinamento da submissão e uma nova avaliação. 

Com esse formato, a ideia é que o maior filtro de propostas aconteça justamente na primeira fase, o que desobriga as instituições a arcarem com os custos para elaborar projetos extensos e complexos de submissão e que podem não receber apoios.  

O Instituto também solicita que, no momento de submissão, as inscritas indiquem a qual linha prioritária a iniciativa se alinha melhor, como uma forma de evidenciar desde o princípio as prioridades de atuação do Instituto. 

 

Pouco controle, mais confiança 

Um dos princípios do Instituto Ibirapitanga na relação com as instituições apoiadas é exercer menos controle sobre o que pode ou não ser feito com os recursos financeiros repassados. Na maioria das vezes, quando um apoio é concedido, a beneficiada pode custear qualquer tipo de despesa com o recurso, mesmo que ao longo da execução a proposta inicialmente apresentada ao Instituto seja alterada. 

Uma das únicas solicitações é que a equipe do Ibirapitanga seja informada sobre mudanças significativas ao longo da parceria. O princípio dessa postura é o fato de que o Instituto confia que as organizações têm capacidade de tomar a melhor decisão sobre a alocação de recursos a cada momento de sua trajetória. 

A mesma lógica se aplica na prestação de contas. Para o Instituto, trata-se menos de uma forma de controle do que está sendo feito e mais um instrumento para compreender a lógica do trabalho realizado. Dessa forma, cada entidade deve apresentar um relatório final – narrativo e financeiro – que descreve o que foi implementado de fato com o recurso recebido. 

 

APRENDIZADOS

Passados cinco anos de atuação desde sua criação em 2017, o Instituto Ibirapitanga teve a oportunidade de ocupar diferentes espaços, debater e dialogar com múltiplos atores, sentar-se à mesa com organizações de inúmeros portes, desenhos e configurações. Tudo isso trouxe conhecimento e aprendizados em sua trajetória. Confira alguns saberes e desafios que o Instituto carrega:

 

Uso de estratégias complementares às doações 

Com a prática, o Instituto percebeu que, além das doações, poderia ter um papel mais ativo no fortalecimento institucional das organizações, apoiando suas capacidades ou promovendo o aprendizado entre pares. Assim, em 2022, realizou um projeto piloto de um programa de fortalecimento institucional. Foram escolhidas seis organizações que já recebiam apoio do Ibirapitanga para terem sessões de diálogo com consultoras visando identificar desafios e criar interação entre elas. A experiência vai até o primeiro trimestre de 2023 e, então, será analisada internamente a possibilidade de criação de uma estratégia mais ampla nessa frente. 

 

Potencial de cruzamento dos programas 

Quando o Instituto teve início em 2017, os programas se desenvolveram paralelamente e operavam a partir de lógicas distintas, sem alinhamento entre si. Com o passar do tempo, a necessidade de buscar intersecções entre os programas tornou-se evidente, de modo a evitar que se constituíssem de maneira dicotômica: de um lado, um programa constituído quase integralmente por organizações negras, na linha de Equidade racial; do outro, quase todas as organizações brancas beneficiadas na linha de Sistemas alimentares. Por isso, passou a promover intersecções entre as duas temáticas, o que, inclusive, conferiu mais coerência ao trabalho desenvolvido pelo Instituto.  

 

Desafio quanto ao sistema de monitoramento 

Para acompanhar os apoios concedidos, o Instituto Ibirapitanga desenvolveu um processo de monitoramento das doações. Entretanto, a equipe está estudando a melhor forma de funcionamento da solução, que ainda exige muito tempo de leitura de relatório, feedback e interação com as organizações. Na prática, a gestão desse sistema exige mais tempo do Ibirapitanga e das organizações apoiadas do que seria desejável.

 

Protagonismo versus suporte 

Considerando que o Ibirapitanga concede apoios para fortalecer o trabalho desenvolvido pelas OSCs e optou por ser um Instituto que trabalha para ampliar espaços de participação, incidência e atuação de terceiros, o resultado dessa mobilização não deveria ser um protagonismo do próprio Ibirapitanga, que se enxerga mais como uma organização de suporte. Mas a equipe tem identificado que, em certos momentos, é interessante e importante que o Instituto tenha uma voz pública mais forte. O desafio atual é equilibrar esses dois lados: ter alguma projeção e, ao mesmo tempo, abrir espaço e dar suporte ao protagonismo de outras organizações. 

 

*Este texto foi produzido com a colaboração de Andre Degenszjan. Foto de Valentina Fraiz / Acervo Ibirapitanga.