Estratégias de grantmaking: o caso do Movimento Bem Maior

 18 de julho de 2023 
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Criado em 2018, a partir da crença de que todas as pessoas na sociedade podem ser corresponsáveis pelo progresso em múltiplos desafios sociais, o Movimento Bem Maior (MBM) tem como principal objetivo fortalecer o ecossistema filantrópico no Brasil, bem como a cultura de doação. 

Para isso, investe tanto em organizações da sociedade civil de base comunitária, como em grandes organizações que atuam pela melhoria de temáticas específicas – como educação, inclusão produtiva e engajamento cívico –, além de apoiar o desenvolvimento e o fortalecimento do terceiro setor como um todo. 

O relato a seguir foi produzido a partir de conversa com Carola Matarazzo, diretora-executiva do Movimento Bem Maior, e Richard Sippli, diretor de operações e desenvolvimento institucional da organização. 

 

CRIAÇÃO

A constituição do Movimento Bem Maior partiu da vontade e atuação de Elie Horn, chairman da Cyrela e fundador do MBM. Em 2015, quando toma a decisão de fazer de sua filantropia um compromisso público, Elie e Susy Horn assinam o The Giving Pledge, uma iniciativa que convida bilionários do mundo a fazer um comprometimento de doar grande parte de sua riqueza para a filantropia ainda em vida ou em testamento. 

A associação a esse grupo de pessoas dispostas a usar de seus recursos financeiros para contribuir com causas sociais fez com que Elie desejasse mobilizar outras pessoas, do Brasil e da América Latina, a também compreender o valor e a importância da filantropia e da cultura de doação na busca por justiça social e fortalecimento da democracia. 

A trajetória culmina em 2018, quando surge a ideia de institucionalizar essa prática, criando uma organização dedicada a desenvolver o campo da filantropia e do terceiro setor. Para dar vida à nova organização, Elie convida Carola Matarazzo para liderar essa empreitada. 

 

Filantropia para fortalecer a filantropia 

Mobilizar pares, conectar diferentes elos, formar redes e investir recursos financeiros em organizações sociais são as principais ações desenvolvidas pelo Movimento Bem Maior para alcançar sua missão e multiplicar o impacto positivo em causas da sociedade. 

A escolha pelo modelo de uma organização grantmaking foi realizada observando o que de melhor o grupo tinha em mãos: recurso financeiro e o conhecimento do setor e das causas por parte de membros da equipe. 

Além disso, a organização se constitui como uma oportunidade de experimentar a filantropia sob outros formatos, partindo desse modelo de reunir em uma só instituição o investimento de um grupo de filantropos para ser aplicado em diferentes causas e agendas. 

Assim, por estimular a vivência da filantropia via pessoa física – modelo bastante diferente do que é realizado em braços de responsabilidade social no instituto da empresa que cada filantropo já tinha, ou nas doações dos respectivos Family Offices – o MBM funciona, então, como um espaço de aprendizado, para que cada um desses integrantes possa se desenvolver e perceber a importância da atuação coletiva e colaborativa em um país com diversas demandas sociais. 

Se cada um tem um grau de maturidade e crenças sobre o que considera mais relevante em termos de áreas de atuação, entender sobre o processo de entrar em consenso com outros e também elencar as pautas e agendas mais relevantes são possibilidades de alinhamento e amadurecimento oferecidas pelo MBM, que, atualmente, conta com 11 filantropos. 

 

PRÁTICAS

 

Princípios e valores transversais 

O MBM conta com alguns princípios e valores que são observados desde o âmbito mais interno, no funcionamento cotidiano da organização, bem como no relacionamento com as instituições selecionadas para receber recursos financeiros do Movimento. São eles: 

  • Colaboração: se sozinho se vai mais rápido, juntos chega-se mais longe. Essa é a importância do trabalho em rede: soluções eficazes para desafios complexos devem ser construídas e executadas coletivamente;
  • Confiança: se a desconfiança paralisa e limita a atuação, assumir riscos, ter a humildade de compreender que não se sabe tudo e confiar na expertise das organizações que estão na linha de frente e conhecem o território em que atuam é fundamental; 
  • Transparência: ligada a colaboração e confiança, a transparência é um importante alicerce para que as intenções e as expectativas estejam alinhadas entre todas as diferentes partes que atuam junto ao MBM. Além disso, permite que outros possam entender melhor as ações e atividades do Movimento e, assim, se engajem e/ou aprendam a partir das experiências; 
  • Senso de urgência: considerando que milhões de pessoas estão, hoje, no Brasil, em situação de vulnerabilidade, é necessário agir rapidamente e com precisão. O senso de urgência está diretamente ligado ao respeito ao outro e à responsabilidade moral a partir da escolha do MBM por atuar no setor filantrópico. 

 

Estruturando a carteira de investimento social privado 

A carteira de investimento social privado do Movimento Bem Maior foi formada combinando o impacto que os filantropos desejavam ver no Brasil com a estratégia já definida para o MBM de atuar com doações em prol do fomento à filantropia e à cultura de doação. 

Com isso, optou-se por fortalecer e apoiar o desenvolvimento de organizações sociais, para que sejam capazes de potencializar os recursos que recebem e, assim, ampliar o impacto positivo de suas ações. 

A carteira de investimentos foi, portanto, dividida em dois pilares: Impulso e Foco

 

>> Pilar Impulso: é o pilar destinado ao investimento no desenvolvimento do ecossistema de suporte à filantropia para potencializar a habilidade da sociedade e de seus cidadãos de se engajarem e agirem efetivamente. 

O MBM compreendeu que dialogar única e exclusivamente com as organizações da sociedade civil (OSCs) não seria suficiente para promover o fortalecimento da filantropia, uma vez que as organizações pertencem a uma cadeia sistêmica maior e mais complexa. 

Assim, percebeu-se a importância de um fortalecimento do ecossistema como um todo. E, para tal, seriam necessários critérios e diretrizes bem definidos, considerando o vasto universo de mais de 800 mil OSCs no Brasil. 

Com isso, o investimento no ecossistema de cultura de doação é realizado pelo MBM a partir de cinco eixos. 

  1. Advocacy: abrange o contexto legal onde as OSCs existem;
  2. Pesquisa: fomento a produção e transparência de dados sobre o setor;
  3. Narrativas: importância de aprimorar os diálogos e debates sobre o setor e a forma como é retratado na mídia, bem como potencializar a produção de conteúdo de qualidade e trazer visibilidade a teses inovadoras e boas práticas;
  4. Redes: incentivo a fóruns, conferências e demais oportunidades de trabalhar por objetivos comuns;
  5. Desenvolvimento institucional de organizações = pilar Foco.

Além disso, em 2022, o MBM conduziu a frente de Impulso com base em quatro conceitos-chave – os 4 C’s – desenvolvidos por membros da Wings e do Philea. São eles: Capacidade, Credibilidade, Conexões e Capabilidade (com uso detalhado mais adiante).

 

>> Pilar Foco: este pilar versa sobre o desenvolvimento institucional de organizações da sociedade civil, com diferentes escopos e de várias regiões do país. 

Para alcançar sua missão de fomentar a filantropia, era necessário escolher uma destinação para os recursos financeiros doados pelos filantropos e outros atores que passaram a fazer parte do MBM. Em um primeiro momento, foi decidido que o Movimento Bem Maior atuaria a partir de causas que já eram relevantes aos membros do grupo, sendo a principal delas a educação. Com isso, o pilar foco tem como principais agendas: educação, inclusão produtiva e engajamento cívico. 

Independente da área de atuação, entretanto, o pilar Foco tem como premissa financiar as organizações para que se desenvolvam e se fortaleçam em sua prática, com liberdade para investir os recursos da forma que julgar mais urgente e relevante, visando gerar transformações mais duradouras para a instituição. Portanto, não se trata de doações programáticas, mas de doações flexíveis.

Outro fator que motivou a escolha por um investimento difuso, isto é, distribuído em diferentes agendas e temáticas, é a crença no fato de que ter um grupo forte de filantropos olhando com intencionalidade para determinadas causas incentiva que mais doadores possam também se debruçar nas causas e, eventualmente, passem a investir nas agendas, por conta do senso de credibilidade trazido pelo grupo de filantropos que constitui o MBM. 

A possibilidade de realizar investimentos de risco é outro ponto positivo do tipo de apoio realizado pelo MBM, uma vez que recursos públicos ou provenientes das áreas de responsabilidade social de institutos empresariais, na maioria dos casos, devem ser mais certeiros e, portanto, diminuem as chances de experimentações e validações de modelos e projetos. 

 

Os modelos de seleção 

Lembrando que o pilar Foco tem uma atuação voltada a três eixos de atuação – educação, inclusão produtiva e engajamento cívico –, o Movimento Bem Maior faz uso de diferentes modelos de seleção das organizações e iniciativas que serão apoiadas. 

 

>> Programa Futuro Bem Maior: criado para potencializar pequenas organizações sociais situadas em municípios de alta vulnerabilidade social, a seleção acontece em forma de edital voltado exclusivamente para o fortalecimento de OSCs, independente de sua agenda de atuação, observando, sobretudo, a relevância das organizações e suas iniciativas para o seu território de atuação. Já foram realizadas quatro edições do programa, com mais de 43 mil pessoas beneficiadas diretamente e 173 mil indiretamente apenas nas três primeiras edições.

>> Projetos especiais: o Movimento Bem Maior julga relevante abrir a possibilidade de seus filantropos e outros membros do grupo trazerem ao movimento causas, agendas, temáticas e organizações já pertencentes a seus portfólios individuais para que recebam também investimento por parte do MBM. 

>> Organizações atuando a nível nacional: o MBM apoia diretamente organizações que atuam a nível nacional para influenciar e melhorar políticas públicas nas três agendas:

  • Em educação, foram priorizados projetos, organizações e iniciativas que conversam diretamente com a articulação e implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
  • Em inclusão produtiva, o MBM visa apoiar instituições que trabalham com o fortalecimento de lideranças sociais. 
  • Em engajamento cívico, são priorizados projetos que envolvem a promoção da importância do voluntariado e da ação da sociedade civil organizada, e também o fortalecimento de lideranças políticas. 

Nessa frente, a seleção das iniciativas é feita majoritariamente a partir de uma busca ativa por parte da equipe do Movimento Bem Maior, que procura conversar com especialistas do setor em questão para compreender as principais demandas e prioridades da área para o país e, com isso, descobrir quais organizações atuam para responder a esses desafios. 

 

Já no pilar Impulso, a escolha pelas organizações que receberão apoio se dá a partir da forma com que elas se conectam ao sistema de avaliação dos 4C’s: 

  • Em capacidade, são priorizadas organizações que, desenvolvendo suas capacidades e com uma boa gestão de recursos, podem desempenhar um papel importante na mudança da cultura de doação no país; 
  • Em credibilidade, são priorizadas organizações e projetos que impulsionam o ecossistema da filantropia a partir de ações para a qualificação do debate público sobre o tema; 
  • Em conexão, o MBM investe em organizações e projetos que promovem a formação de redes e incentivam o aprendizado entre pares, bem como compartilhamento e disseminação de conhecimento;
  • Em capabilidade, o MBM apoia organizações de diversos escopos na melhoria de seus planejamentos e a ganhar segurança nos processos de tomada de decisão, auxiliando lideranças sociais a aplicar ferramentas para o cumprimento de suas ações com mais eficácia e eficiência.

Nesse caso, a seleção das organizações também se dá por um movimento ativo do MBM, que busca compreender e identificar, a partir de pesquisas e estudos e com um olhar macro para o setor e para seus cinco eixos de atuação – advocacy, pesquisa, narrativas, redes e desenvolvimento institucional de OSCs – eventuais lacunas e focos de investimento. 

 

Critérios de seleção 

Apesar de cada frente de apoio contar com alguns critérios específicos, uma vez que organizações de base comunitária e organizações que atuam a nível nacional têm características muito distintas entre si, o Movimento Bem Maior conta com um conjunto de critérios de seleção que se aplicam de maneira transversal: 

  • Credibilidade do ator/organização para o ecossistema; 
  • Histórico da organização;
  • Articulação no território com demais envolvidos, sejam internos ou externos ao ecossistema; 
  • Alinhamento conceitual e visão compartilhada sobre a importância da cultura de doação e todos os eixos do projeto/iniciativa em questão; 
  • Princípios de boa governança, que envolvem respeito ao arcabouço legal de acompanhamento dos projetos; 
  • Apoio a atores que conversem com o eixo narrativo do investimento, isto é, que não se contradizem em seus projetos e iniciativas, mas que caminhem na mesma direção; 
  • Relevância da organização ou iniciativa para destravar outros processos importantes no setor. 

 

Metodologia de acompanhamento 

Por considerar a alta relevância de um processo de acompanhamento bem estruturado dos projetos e organizações selecionadas, o Movimento Bem Maior formou uma equipe especialmente designada para montar a metodologia de acompanhamento. 

O primeiro passo é estabelecer uma relação de confiança com as organizações, deixando claro que o MBM acredita em sua expertise e que elas têm autonomia para decidir qual é a melhor forma de aplicar o recurso recebido e abertura para compartilhar tanto as realizações como os desafios com o MBM. O Movimento também conta com um serviço de apoio no desenvolvimento da teoria de mudança para as organizações que ainda não contam com um plano bem definido. 

Baseado na teoria de mudança de cada organização, o MBM monta painéis com as metas de cada projeto, para facilitar esse acompanhamento “em tempo real” por parte da equipe, sempre mantendo uma relação próxima de diálogo com as organizações. Isso demonstra o quanto o processo é flexível, uma vez que, na primeira reunião com as organizações depois de a parceria ser estabelecida, as instituições definem, conjuntamente, a periodicidade dos encontros de acompanhamento: se bimestrais, trimestrais ou, até, mensais. 

Nos relatórios periódicos, a organização deve apresentar ao MBM aspectos referentes ao uso dos recursos com eficácia e eficiência, pontuando o que a organização se dispôs a fazer e de que forma aplicou o investimento. A ideia central, entretanto, é deixar claro ao MBM de que forma o investimento está ou não possibilitando o desenvolvimento da organização. 

No caso do programa Futuro Bem Maior, por exemplo, que apoia organizações de base comunitária e coletivos, muitos dos quais não contam com um estatuto, o Movimento tem alguns parâmetros de segurança, como ter dois responsáveis pela organização e a abertura de uma conta específica para receber o recurso. 

Além disso, o MBM criou a Comunidade de Projetos, que abrange iniciativas e ações que já foram ou que ainda estão sendo apoiadas, com o objetivo de manter uma relação de proximidade com as organizações. Isso facilita também que o Movimento atue na conexão de atores no ecossistema, fazendo pontes, promovendo parcerias e conectando pares com interesses semelhantes. 

 

APRENDIZADOS

Os cinco anos de existência do Movimento Bem Maior ajudaram a organização a aprender com seus processos e, a partir disso, aprimorar práticas de seleção e acompanhamento em prol da melhoria do ecossistema filantrópico brasileiro. Conheça alguns dos principais aprendizados do período: 

 

Prática diária da escuta ativa 

Por valorizar uma filantropia colaborativa e de confiança, o Movimento Bem Maior investe na prática da escuta ativa, realizada diariamente, enquanto uma de suas ferramentas mais relevantes para compreender as maiores e mais urgentes necessidades e demandas das organizações apoiadas, bem como a forma mais otimizada de apoio que o MBM pode oferecer. 

Acreditar no processo 

Compreender que não há resposta para tudo e que muito pode ser descoberto ao longo de um processo de financiamento, por exemplo, ajudou o Movimento Bem Maior a seguir em frente ao longo dos anos, mesmo sem total clareza sobre qual era a teoria de mudança de determinada organização ou como uma mensuração de resultado seria feita. 

Transparência e troca de experiências 

O Movimento Bem Maior acredita na importância da comunicação de suas ações e compartilhamento de experiências. Isso envolve executar suas iniciativas e apoios da forma mais transparente possível, dividindo acertos, erros, dúvidas e possíveis caminhos. 

Diálogo franco 

O princípio da transparência também se aplica no relacionamento com as organizações apoiadas, que devem estar envolvidas em processos transparentes e de diálogos francos com a instituição doadora, que, por sua vez, se mantém sempre à disposição para conversas e trocas. 

Ajuste de processos internos 

Principalmente durante a pandemia de Covid-19, o Movimento Bem Maior notou que muitas organizações selecionadas para receber apoio optaram por mudar o escopo de seus projetos em razão da emergência sanitária. A alteração em si não foi uma questão, uma vez que o MBM já parte do princípio de um uso flexível de recursos. Entretanto foi necessário não só que as organizações comunicassem as novas rotas e atualizassem os documentos de acompanhamento, mas que o próprio Movimento entendesse como poderia adaptar seus processos para melhor acompanhar as instituições nesse período. 

Autorreflexão

Ao longo dos anos, o Movimento Bem Maior investiu em processos de autorreflexão e análise de suas ações, questionando as próprias conclusões e métodos, com o objetivo de aprimorar não só sua maneira de apresentação, mas também seu relacionamento com as organizações, o diálogo com o setor e a busca por novas referências.