Quando nos propusemos a construir uma ponte entre os investidores sociais, financiadores e filantropos e as lideranças e organizações sociais entre 2010 e 2011, pouco imaginávamos que viria pela frente uma travessia tão rica de acertos e erros, de desafios e aprendizados. Ao longo de nossa trajetória, vivenciamos dores e alegrias que nos convidam a refletir hoje, quase uma década depois dos nossos primeiros passos como ponteAponte, sobre uma questão que segue nos inquietando diariamente: afinal, como potencializar iniciativas de impacto socioambiental nesse delicado equilíbrio de sonhos, expectativas e perspectivas entre financiadores e financiados, fazendo da ponte a terceira margem de um rio chamado transformação social?
Se não vemos uma resposta única e universal, algumas pistas emergem nesse sentido. Primeiramente, na ponteAponte adotamos o termo “potencialização” e não “aceleração” nem “capacitação” por uma questão de observação prática de campo. Acreditamos que, muitas vezes, as ações não precisam ser “aceleradas”; pelo contrário, há momentos em que é necessário dar uma parada, “respirar pela barriga” e até mesmo voltar uns passos, no difícil balanço entre quantidade e qualidade. Entre escalabilidade e replicabilidade[1], escolhemos a segunda, sempre que possível. Questionamos também o termo “capacitar”, por acreditar que cada um já é em si capaz de contribuir para transformar realidades – e o fará melhor ainda ao desenvolver plenamente seu potencial, de forma emancipadora.
Ainda que nossa frente chamada de potencialização tenha surgido mais recentemente, em 2015, quando o Google nos convidou para acompanhar dez organizações da sociedade civil (OSCs) então vencedoras do segundo Desafio de Impacto Social – projeto que se estendeu por dois anos -, em um resgate histórico, notamos que essa lente para enxergar o mundo sempre esteve presente em nossas ações. Em nosso primeiro setênio, trabalhamos muito diretamente com as organizações sociais, aprendendo sobre seus desafios e construindo coletivamente soluções mais efetivas. Um de nossos primeiros trabalhos se deu em um lar de idosos em Bragança Paulista/SP, chamado Vila São Vicente de Paulo. Auxiliamos na cocriação de sua missão e visão, até então inexistentes, porém cientes de que o principal valor que agregamos ali foi promover um rico diálogo entre seus colaboradores nesse processo. Movimento semelhante ocorreu na parceria com a fundação suíça Womanity, em que apoiamos no decorrer de um ano o desenvolvimento institucional da OSC Mulher em Construção (RS), que recebia o financiamento da organização para esse fim.
Reflexão #1: potencializar(-se) é um fim em si, não só um meio (a jornada importa tanto ou mais do que o destino)
Nesse período, já atendíamos o CIES (SP), organização que se tornaria uma das mais reconhecidas na área de saúde do país. Por mais de cinco anos, desenvolvemos uma relação quase simbiótica com a OSC e sua equipe, em uma jornada de potencialização conjunta. De um lugar privilegiado, da perspectiva do financiado, acompanhamos reuniões com financiadores, apoiamos a formação de parcerias, fizemos inúmeras formações para atender o crescimento exponencial das equipes de trabalho. O que aprendemos dessas experiências, muitas vezes duras e frustrantes, foi a importância de parcerias genuínas, que testemunham os esforços e permitem troca de experiências e saberes sem imposições ou respostas padronizadas, respeitando as condições de cada uma das partes.
Reflexão #2: a potencialização começa dentro de casa – inclusive a do parceiro financiador
Uma das frentes que vimos atuando nos últimos anos é a de qualificação do grantmaking, por meio de potencializações realizadas diretamente com os financiadores, tanto para (re)desenharem sua Teoria de Mudança quanto para refletirem se as doações atualmente realizadas estão promovendo o maior (e melhor) impacto positivo possível. Um exemplo recente foi o trabalho que fizemos com o Instituto CCP, em que construímos coletivamente sua Teoria de Mudança envolvendo não só a equipe do instituto, mas também a alta cúpula da empresa, inclusive o CEO, que participou de todo o processo de cocriação, o que lhe permitiu não somente apontar diretrizes estratégicas, mas também aprender e ter uma nova experiência de qualificar sua visão sobre o campo socioambiental.
Reflexão #3: ela é transversal a tudo o que fazemos
Até mesmo quando nos propusemos a redigir relatórios anuais de atividades para OSCs, direcionamos esforços para a potencialização. Um exemplo foi o trabalho que coconstruímos com a Pró-Saber, em 2016. Ao longo de todo o ano realizamos encontros com a equipe para ajudá-la a refletir sobre que tipo de relatório queriam, a pensar em indicadores, em formas de coletar os dados, antes de efetivamente elaborar o relatório, de forma que o conhecimento de todo o processo fosse absorvido pela organização e não se resumisse a “mais um documento que será lido por (muito) poucos”.
Nessa jornada de construções coletivas, compreendemos que a relação entre financiadores e grantees, sejam eles OSCs, sejam coletivos, movimentos sociais, organizações em rede ou ainda congêneres, pode ser mais qualificada e efetiva ao se estruturar tendo como base seis pilares que consideramos fundamentais no contexto atual: colaboração, diálogo, empatia, diversidade, flexibilidade e confiança.
Pilar #1: Colaboração
Quando falamos em potencialização, estamos falando em compartilhar conhecimentos e experiências, em aprender uns com os outros, independentemente de se estar no lugar do financiador, do intermediário, de quem recebe o investimento e da comunidade ou território. Ou seja: em criar comunidades de aprendizado. Para isso, a colaboração deve transbordar do discurso para a realidade, tendo em vista o impacto coletivo.
Exemplo disso é o programa Potencializa, desenvolvido pela ponteAponte em 2018 com o objetivo de potencializar jovens de contextos periféricos de São Paulo para se fortalecerem como agentes de transformação social local. Após um piloto solo, que gerou incontáveis aprendizados internos, entendemos que seria importante estruturar uma rede de parceiros para qualificar o programa, mesmo que implicasse menos autonomia e protagonismo da nossa parte. Em 2019, lançamos a segunda edição, coordenada por pesquisadoras da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e contando com recursos financeiros da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU), além das parcerias com o British Council (metodologia Active Citizens), o CAVC (idiomas) e a Escola Aberta do Terceiro Setor (cursos e videoaulas). Atualmente, o programa é executado por alunos bolsistas e voluntários da FEA, com a supervisão de docentes e apoio da ponteAponte, e totaliza o equivalente a R$ 310 mil em contrapartidas para os jovens selecionados – o que jamais teríamos atingido sozinhos, sem colaboração.
Pilar #2: Diálogo
Acreditamos que o diálogo também é um fim em si, não só um meio – e quando ele acontece com escuta ativa de todas as partes, amplificam-se os resultados da experiência para muitos outros aspectos além do objetivo proposto em si.
Um exemplo de potencialização baseada em diálogo de que nos orgulhamos foi o Movimento Coletivo, que cocriamos com a equipe de sustentabilidade e valor compartilhado da Coca-Cola Brasil no final de 2017. Em 2018, implementamos um edital (Alimentação +Nutrição), resultando em seis OSCs que trabalham nessa temática selecionadas entre mais de 360 de todo o país. Não se tratou de uma relação em que o financiador (Coca) se limitou a aportar recursos financeiros para as organizações, como é muito comum no investimento social privado. Houve um interesse genuíno do financiador de acompanhar e aprender com as iniciativas, com diálogos transparentes, críticos e construtivos, abordando limitações como a natureza do negócio da empresa (fabricante de bebidas açucaradas) e buscando caminhos conjuntos e aprimoramentos constantes, em uma potencialização em 360 graus. Outra inovação que implementamos nesse processo foi a potencialização cruzada, hoje presente em todos os nosso projetos do tipo: um intercâmbio de saberes entre as próprias organizações, que se visitaram umas às outras e aportaram relevante conhecimento técnico entre si, para além da tradicional abordagem colonizadora, de “cima” para “baixo”.
Pilar # 3: Empatia
Um dos maiores desafios do mundo atual, a nosso ver, está ligado à visão reducionista que traduz o mundo – e seus respectivos problemas sociais – em polarizações dignas de códigos de programação – 0 x 1, bem x mal, certo x errado, OSCs x empresas, financiados x financiadores -, sem uma abordagem sistêmica baseada em complexidade. Soluções efetivas dependem de integração, que não acontecerá sem empatia e entendimento mútuo.
Quando alicerçados em uma construção coletiva e empática, os programas sociais decerto apresentam maior robustez e efetividade nos resultados. Em 2018, por exemplo, a Fundação Tide Setubal fez uma escuta ativa com dezenas de lideranças periféricas para então desenhar seu novo programa, que resultou no edital Elas Periféricas, voltado a mulheres negras de periferias da capital paulista. O próprio edital foi cocriado com essas lideranças, que apoiaram toda a construção do regulamento, da linguagem aos critérios de seleção, com facilitação da nossa equipe. Neste ano, já estamos potencializando o segundo grupo de selecionadas, totalizando 11 coletivas (como se autodenominam) em um processo contínuo de trocas horizontais e conhecimentos, com mentorias, formações e oficinas – algumas das quais facilitadas por elas para elas mesmas.
Pilar # 4: Diversidade
“[…] buscamos encontrar uma diversidade regional, geracional, institucional, racial, temática e de gênero […]”. Em todas as nossas chamadas abertas (editais, prêmios, desafios e mapeamentos), incitamos nossos parceiros financiadores a apresentar esse excerto nos respectivos regulamentos, pois entendemos que as diversidades são potencializadoras em si.
Um deles foi a Fundação Arymax, que, em 2018, fundamentou seu Concurso de Projetos para jovens de 18 a 30 anos no princípio da diversidade. Todo o processo de potencialização que conduzimos ao selecionarmos dez projetos sociais contou com uma riqueza especial de trocas e experiências entre o grupo, a fundação e nossa equipe. De músicos e grafiteiros das periferias de São Paulo a empreendedores em microcrédito, geração de empregos e formação política recém-saídos das escolas de negócios mais tradicionais do país – ou de mulheres negras fomentando startups entre empreendedores negros a lideranças LGBTQ acolhendo esse público vítima de violência e outras vulnerabilidades sociais. Apesar do pouco tempo de convívio (cerca de 4 meses), a parceria entre todos foi além do investimento social, concretizando-se em relações que se mantêm até hoje.
Pilar #5: Flexibilidade
Diante dos complexos desafios sociais, em um ambiente cada vez mais dinâmico e de incertezas, a flexibilidade é um fator-chave para qualificar a relação entre financiadores e organizações apoiadas. Abertura à experimentação, a nosso ver, deveria ser em alguma medida princípio de toda relação de grantmaking, ainda que dependa de mudança de mindset e culturas organizacionais muitas vezes engessadas, burocráticas e pouco eficientes.
Uma referência que trazemos é o programa Amigo de Valor, do Santander, um dos maiores programas de arrecadação do país, com recursos incentivados destinados a apoiar iniciativas que atuam em prol dos direitos das crianças e adolescentes. Desde 2019, potencializamos 67 projetos em contextos dos mais diversos: geográficos (de Barueri/SP a Glória do Goitá/PE), de formato e porte organizacional (OSCs e prefeituras por meio de secretarias de assistência social) e de eixos temáticas (de acolhimento institucional a medidas socioeducativas). Sem flexibilidade, resiliência, repactuações e realinhamentos frequentes e um genuíno interesse do financiador em trabalhar junto com os projetos, acompanhando de perto e potencializando-os, seria inviável manter uma relação de parceria por exemplo no cenário atual da Covid-19, em que muitos dos selecionados tiveram de interromper ou mudar totalmente sua forma de atuação.
Pilar #6: Confiança
Por fim, para que todos os demais pilares se sustentem no longo prazo, a confiança – acima do controle e entre todas as partes envolvidas – mostra-se fundamental na relação entre financiadores e agentes de transformações sociais. É para esse patamar que o investimento social privado precisa urgentemente dar um salto e se reinventar.
Como dissemos, nosso primeiro programa de potencialização se deu em 2015, no Desafio Google de Impacto Social. E, desde então, temos tido o privilégio de ser uma ponte na construção de relações de confiança entre os envolvidos. No caso da gigante de tecnologia, por exemplo, foram doados mais de R$ 11 milhões em dez OSCs, com um tíquete médio superior a R$ 1 milhão por organização. Ao longo dos dois anos de potencialização, entretanto, nenhuma nota fiscal sequer foi solicitada às organizações. Na base dessa atitude está uma relação de confiança estabelecida por meio do comprometimento de todos em prol do alcance dos impactos sociais almejados e do acompanhamento de perto, “na alegria e na tristeza”, de cada uma das vencedoras do desafio.
Pela nossa expertise, uma estratégia de grantmaking alicerçada nesses seis pilares não estará blindada de erros, falhas e críticas, mas seguramente construirá relações mais genuínas e fomentará transformações sociais mais efetivas. Os seis pilares acima mencionados, não à toa, tornaram-se em 2017 os valores da própria ponteAponte, que nos guiam todos os dias. Reconhecemos que não é o caminho mais fácil; no entanto, entendemos que é a jornada mais coerente que os financiadores podem percorrer em direção a um mundo mais justo, integrado e sustentável.
NOTAS
[1] Considerando que escalabilidade refere-se ao crescimento endógeno, de dentro para fora, controlado por um agente e patenteável, enquanto replicabilidade é a forma de expansão exógena, baseada em parcerias e compartilhamento de metodologias (dados, saberes e conhecimentos aberto).
Para saber mais
Para aprofundar de forma crítica a reflexão sobre potencialização e a relação entre financiadores e agentes de transformação social, recomendamos a leitura do artigo Novas narrativas para o investimento social e acesso a recursos nas periferias, publicado na Sinapse, do GIFE. Nele, apresentamos o estudo do caso “Potências Periféricas”, realizado por meio de observação participante ao longo de mais de um ano de um grupo de coletivos periféricos de São Paulo, resultando em um manifesto com 12 fatores culturais e comportamentais (de mudança de paradigma, know-how e visão empática) e 12 fatores técnicos (de comunicação, processos de seleção e relacionamento/parcerias) direcionados a investidores sociais que queiram estabelecer uma relação genuína e não colonizadora com lideranças das mais diversas periferias do país.