Tempo, coletividade e transformação nas organizações da sociedade civil: reflexões em comunidade

 19 de dezembro de 2023 
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Por Ana Biglione e Laura Candelaria, facilitadoras da Comunidade de Aprendizagem do IACP, pela Noetá

 

Em 03 e 04 de agosto de 2023, no Centro Paulus, localizado no extremo sul de São Paulo, aconteceu o segundo encontro da comunidade de aprendizagem do Instituto ACP, com a intenção de abrir espaço para conversas e reflexões sobre os dilemas institucionais vividos nas organizações. Aproximadamente 46 pessoas de 16 organizações estiveram presentes, e o tema que norteou o encontro foi o Cuidado. Este texto nasce da vontade de reverberar as vozes ouvidas durante e após o encontro, na sua avaliação.

 

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis“.

Manoel de Barros

 

SOZINHO, A GENTE… SE EXAURE!

A lógica mercadológica de competição não é privilégio apenas do segundo setor. Ela vem sendo reproduzida entre as organizações da sociedade civil – generalizadamente. Ainda que os desafios sociais sejam complexos e sistêmicos, ouvimos diversas vezes ao longo do encontro o quanto a atuação do terceiro setor parece cada vez mais seguir práticas individualistas e de competição. Alguém, logo no começo do encontro, verbaliza: “o terceiro setor é totalmente capitalista”. Mas o que será que isso significa?

O quadro que pintamos ali é que grande parte das organizações está isolada no seu fazer. As parcerias são, majoritariamente, para encontrar financiamento e, às vezes, para colaboração ou trabalho conjunto. Amarradas a uma lógica que passa por questões de ego – “apenas eu sou bom nisso”, desconhecimento – “quem mais quer fazer isso?”, aceleração – “precisamos correr com isso”, e pressão constante por resultados – “precisamos entregar isso”…, as organizações se parecem cada vez mais a multinacionais, com um crescimento global e interminável, mas em voo solo.

Algumas organizações estão se tornando gigantes e, sem nem perceber, engolindo outras. Estamos, em boa parte da sociedade civil organizada, cultivando a cultura do fazer sozinho: cada organização cuida do seu fazer. Estamos nos esquecendo que a mudança é estrutural e sistêmica. Uma sociedade civil e um tecido social fortalecidos são como uma floresta, fortalece-se com diversidade e pluralidade, e não com monopólio de organizações. Mais conscientes desse desafio, surgem as perguntas: Qual corpo faz sentido para cada organização? Qual o tamanho ideal? Quanto cada organização precisa crescer sem perder a qualidade? Quais outras formas de fazer que prescindem de crescimento institucional contínuo? Como podemos nos unir com outras organizações que atuam no mesmo tema?

A intenção aqui não é traçar respostas únicas, mas provocar que mais iniciativas se façam essas perguntas, intencionalmente. “O clima de não canibalismo tem que estar como prioridade no planejamento estratégico”, diz um dos participantes, afirmando sobre a intencionalidade que precisa existir se quisermos de fato construir uma realidade colaborativa e plural, que difere da atual, dando a entender que se seguirmos no automático, é ela que irá prevalecer. 

Além de pouco efetiva em relação aos desafios sociais, esse isolamento é humanamente devastador. “Burnout no terceiro setor é chamado de missão”, fala, com ironia, um outro participante. 

Questões de saúde mental e o alto nível de aceleração na cultura organizacional são parte dos desafios atuais e pedem muita atenção. As pessoas têm sintomas e as organizações também, mas estamos tão imersos neles que nos faltam olhos que possam ver.

Quando a gente escolhe sair do redemoinho e refletir, podemos, com certa facilidade, identificar os sintomas da aceleração organizacional¹:

  • A urgência e a importância do que precisa ser feito vão acelerando e gerando uma percepção de que, ao final do dia, sempre ainda devo muito.
  • A exaustão e o cansaço são generalizados. As reuniões são em sequência, sem intervalos para o descanso. As reuniões se tornam cada vez mais curtas e geram a sensação de que nem conversamos, nem aprofundamos ou resolvemos a questão.
  • O horário de trabalho não é respeitado. Tem-se cada vez mais dificuldade de saber dizer quando se está trabalhando e quando está descansando; é difícil reconhecer o começo e o fim.
  • Os prazos estão sempre apertados e já não se tem clareza do que realmente é prioridade.
  • As dinâmicas de poder e a estrutura dos cargos nas organizações geram competitividade e desconfiança – afastam pessoas ao invés de aproximar. 
  • Há pouca ou nenhuma condição de atenção plena, e ainda menos espaços para refletir sobre a prática.
  • Falar sobre bem-estar e saúde mental parece pouco importante. 

 

A ARMADILHA DO TEMPO

Urgente é ir com calma. Isso não necessariamente significa ir devagar, mas sim no seu tempo, estando presente. “Não é verdade que todos temos as mesmas 24h. A exaustão e cansaço estão mais presentes nas populações historicamente vulneráveis”, diz Michelle Prazeres, nossa convidada para a conversa sobre saúde mental e desaceleração. “Não é possível desacelerar sozinha. Precisamos democratizar o cuidado e a desaceleração”, completa. 

Ao nos depararmos com esse cenário, e com o quão comum ele se tornou na vida organizacional do nosso setor, confirma-se a percepção de que não é possível desacelerar – ou transformar essa realidade – sozinhos. Se os processos sociais são sistêmicos, sua transformação também o é. “Estou cansado de sermos somente fazedores […] quero também pensar, celebrar, olhar para minha carreira”, diz um participante. A mudança necessária é estrutural. A ser amplificada para o coletivo, e aprofundada em cada individualidade. “Desacelerar é caminhar para o bem-viver”, diz uma participante refletindo sobre a cultura da desaceleração enquanto movimento coletivo.  

Outra voz afirma que “quanto maior privilégio mais responsabilidade de se olhar para essas questões e outras que nos atingem enquanto sociedade”, trazendo a perspectiva de que se não temos as mesmas 24hrs, também não temos as mesmas responsabilidades. 

Ainda assim, todos nós reconhecemos dentro do paradoxo de que justamente por estarmos dominados pelos sintomas, a tarefa dessa transformação se torna ainda mais difícil. O fazer coletivo exige construir relações de confiança que, por sua vez, demandam tempo, conversa, escuta. Presença verdadeira e disponível. É trabalhoso e mais demorado, ou seja, exige tudo que não temos disponível. Qual então a saída? Ou a entrada?

Naquele espaço de dois dias, o compartilhar de experiências práticas e vividas pelos participantes não foge à regra de que: quando damos conta de priorizar as escolhas pelo diálogo e presença, elas abrem espaço para uma nova forma de criação e sustentação do que é feito. Talvez esta seja, em si, a transformação. 

Sem a intenção de puxar a sardinha para o nosso lado, espaços como esse encontro anual da comunidade de aprendizagem, promovido pelo Instituto ACP, onde pessoas e suas organizações se encontram para compartilhar experiências, suas dores e delícias a partir da prática, realmente nos parecem fundamentais. Em se tratando de desafios complexos, a vivência de espaços seguros para dialogar são essenciais, tanto para aproximar e fortalecer a atuação individual e coletiva, quanto para a criação dos vínculos de confiança e colaboração. “Ouvir o desafio de outra pessoa me ajuda a enxergar mais sobre o meu”, “o diálogo me ajuda a contextualizar os desafios: são comuns, são nossos”, “sei que não estou sozinho”, são falas que brotam dessa experiência. 

É na interdependência que existimos de verdade. As parcerias entre organizações que atuam com propósitos semelhantes nos parecem essenciais para aumentar seus potenciais, cocriar atividades e unir esforços. Quais espaços ajudam nosso campo a se tornar mais humano e menos tarefeiro? Como assumir erros e acertos e desenvolver um olhar reflexivo que fortaleça uma atuação de fato estratégica e colaborativa? 

A imagem construída no encontro foi de uma bússola que nos alertasse, sempre que fosse preciso, a voltar a pensar na estratégia macro de cada iniciativa, mas atrelada à responsabilidade de cada iniciativa enquanto campo, ou seja: no que isso favorece não apenas a minha organização, mas todo o campo? Onde mesmo queremos chegar, enquanto coletivo? Que transformação estamos buscando “como um todo”? E como podemos, calma e cuidadosamente, rumar para essa direção? 

 

A SENSIBILIZAÇÃO DOS ESPAÇOS DE PODER

A roda final do encontro da comunidade costuma ser poderosa. São quase 50 pessoas engajadas com transformação da realidade, vindas dos mais diversos e desafiadores contextos, sentadas em círculo, pensando no que é preciso fazer para que tudo que foi conversado ali, ao longo daqueles dias, não se esvaia com os ventos fortes, também fruto da crise climática. 

Naquele dia, pairava no ar a sensação da responsabilidade de zelar pela consciência que ganhamos enquanto campo. Em que medida esse movimento de autocrítica e auto observação que fazemos sobre o nosso próprio setor pode mobilizar pautas comuns a serem endereçadas enquanto coletivo? Como essas e outras reflexões dialogam com mais organizações e financiadores do terceiro setor? Como essa comunidade de aprendizagem pode influenciar as práticas desse imenso campo? O desejo que se impõe é de levar esse tema para outras esferas, em especial à dos financiadores. 

Do encontro passado (agosto de 2022), nasce o podcast “O que será de nós?” e sua primeira temporada. Um ano depois (agosto de 2023), falamos de seguir com ele e de ampliar sua escuta por cada vez mais atores do campo. Mas surgem também vontades novas, traduzidas na ideia de criar uma carta aberta, um manifesto, uma iniciativa que possa contar – de nós para nós mesmos, de campo para campo, o que nos parece fundamental no jeito como queremos caminhar rumo à transformação, o tipo de doação que potencializa as organizações, as pessoas que formam parte dela e a sua ação no mundo. 

É preciso trazer para a pauta a importância do Desenvolvimento Organizacional na geração de mudanças mais duradouras e consistentes, na construção de uma sociedade civil organizada plural e fortalecida. Pautar a importância da atuação articulada e colaborativa do setor para alcançarmos transformações mais consistentes. É preciso provocar novas práticas de doação e de gestão, ressaltando, por exemplo, a importância da confiança, o papel das comunidades de aprendizagem, de troca e colaboração. 

O encontro se encerra com cada um de nós mais conscientes de que se individualmente não poderíamos dar esse passo, torna-se ainda mais essencial andarmos juntos para de fato possibilitar mudanças que são complexas, incontroláveis e coletivas. 

 

A mudança necessária é tão profunda que se costuma dizer que ela é impossível. Tão profunda que se costuma dizer que ela é inimaginável. Mas o impossível está por vir. E o inimaginável nos é devido“.

Paul Beatriz Preciado

 

¹ Conteúdo produzido por Ana Biglione e Michelle Prazeres, que inspirou o “bingo” de uma cultura organizacional acelerada, Michelle Prazeres, do Instituto Desacelera.