Estratégias de grantmaking: o caso do Fundo Positivo 

 14 de setembro de 2023 
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Criado com o fomento do poder público federal e com o objetivo de garantir a sustentabilidade do movimento social de HIV/Aids, o Fundo Positivo surge em 2014, tendo o grantmaking como sua principal estratégia de ação. Desde sua criação, apoia diretamente organizações da sociedade civil (OSCs), além de atuar na captação de recursos, uma vez que se trata de um fundo independente. 

O presente material conta a trajetória do Fundo Positivo, as particularidades de sua criação, a mudança de foco da instituição com o passar do tempo, as atividades desenvolvidas atualmente e as estratégias de grantmaking e de captação de recursos. O caso foi desenvolvido a partir de conversa com Harley Henriques, fundador e coordenador geral do Fundo Positivo. 

 

CRIAÇÃO

O Fundo Positivo foi criado em 2014, durante a gestão de Dilma Rousseff, a partir da compreensão, por parte do Ministério da Saúde, de que o movimento social para conscientização e tratamento de HIV/Aids foi fundamental para que a política de Aids do Brasil passasse a ser considerada referência global, enquanto resultado de uma construção conjunta entre sociedade civil e poder público. 

Reconhecendo e legitimando a importância desse movimento, o Ministério fomenta, então, a constituição de um fundo que pudesse contribuir para a sustentabilidade do movimento. Houve um investimento inicial, durante o primeiro ano da instituição, no valor de R$ 500 mil, com recursos provenientes do Tesouro Nacional em parceria com um organismo bilateral, a Organização Panamericana de Saúde (OPAS). 

 

Grantmaking enquanto atividade-chave

Ao contrário de outras iniciativas, o Fundo Positivo já nasceu com o repasse de recursos a terceiros como estratégia principal e essência da organização. 

Esse posicionamento foi um aspecto importante quando teve início a captação de recursos, uma vez que empresas nacionais, enquanto as primeiras financiadoras do Fundo, passaram a enxergar os benefícios de apoiar um fundo independente. Ou seja, ao invés da própria empresa montar uma operação, o que demandaria alto investimento financeiro de infraestrutura e para a constituição de uma equipe capacitada, a vantagem fica em apoiar um fundo que tem a capilaridade nacional para ser responsável por fazer a distribuição e acompanhamento de recursos para as organizações selecionadas em todo o Brasil.

O fortalecimento da democracia é outro fator conectado à escolha da organização por ser exclusivamente grantmaker. Uma vez que a democracia é assegurada a partir de uma sociedade civil fortalecida, atuante e ativa, é necessário, portanto, expandir o olhar para além das empresas e corporações e observar e apoiar projetos voltados ao entorno, à comunidade e às populações menos favorecidas, que é o foco de organizações da sociedade civil. 

 

Mudança de foco 

Apesar de ter nascido como um fundo com foco no tema do HIV e Aids, ao longo dos primeiros anos de atuação, o Fundo Positivo percebeu que estava financiando projetos que extrapolavam esse campo específico e se relacionavam a temas como: grupo de mulheres, movimento negro e, principalmente, população LGBTQIA+, atuando para apoiar a promoção do acesso a direitos de grupos minorizados.

Assim, tomou a decisão de, em 2018, alterar sua missão institucional, que passou a focar no cuidado de pessoas a partir da saúde preventiva e diversidade e diminuição das desigualdades sociais. 

Para isso, o Positivo investe no fortalecimento da sociedade civil, auxiliando OSCs e movimentos de base com respostas ao enfrentamento das desigualdades em saúde; defesa do direito à saúde pública universal, integral e equânime; prevenção e assistência às pessoas vivendo com IST´s/HIV/AIDS (infecções sexualmente transmissíveis); saúde sexual e reprodutiva; inclusão social; diversidade; acesso à justiça; promoção e defesa dos direitos LGBTQIA+, entre outras temáticas. 

 

Particularidades de um fundo independente 

Um elemento desafiador para o Fundo Positivo é que, ao contrário de instituições familiares ou empresariais, um fundo independente não conta com um mantenedor principal e/ou exclusivo, seja uma família ou uma empresa. Uma organização independente focada no grantmaking precisa investir na captação de recursos para que possa cumprir seu papel de financiadora. 

Outra particularidade do Positivo foi o tipo de financiamento que recebeu ao longo do tempo. Enquanto muitos dos outros fundos independentes foram fomentados por fundações e outras instituições internacionais que criaram uma organização no país a partir de um endowment (estruturas que abrigam recursos financeiros provenientes de doações de pessoas físicas e jurídicas, e podem ser considerados como instrumento de garantia da sustentabilidade financeira de longo prazo), o Fundo Positivo, por ter sido fomentado pelo governo federal, contou com limitações jurídicas para o repasse de recursos e, por isso, conta, desde o início, com a missão de captar para financiar. As fundações internacionais correspondem a cerca de 70% dos recursos aportados no Fundo Positivo, enquanto as empresas nacionais correspondem a 30%. 

 

PRÁTICAS

 

Fundos dentro de um Fundo 

O Positivo segue o modelo de diferentes fundos dentro de uma mesma organização. 

Ao todo, são três frentes: 

  • Fundo Saúde Preventiva, que engloba o programa de grantmaking em HIV e funciona a partir do lançamento de editais e financiamento de projetos; 
  • Fundo Positivo LGBTQIA+, lançado em 2021 voltado a ações de saúde mental, combate à insegurança alimentar, cuidados com saúde da pessoa idosa, direitos reprodutivos, empregabilidade, escolaridade, redução de danos e cultura da comunidade LGBTQIA+ e suas intersecções; 
  • Fundo Imigrantes, que, com o projeto “Empreendedorismo, saúde e direitos humanos para venezuelanos em região fronteiriça”, desenvolvido em Boa Vista e Pacaraima (RR) e Oiapoque (AP), visa melhorar a condição de saúde e reduzir a incidência de doenças entre migrantes venezuelanos e brasileiros que vivem em situação de vulnerabilidade, a partir do aumento do acesso aos cuidados de saúde e treinamento de promotores comunitários de saúde. 

Além dessas três frentes, o Positivo também desenvolve ações de comunicação relacionadas à saúde preventiva. 

 

Quem pode participar 

O Fundo Positivo seleciona projetos de organizações da sociedade civil, redes e de movimentos de base, que sejam formalmente constituídos e institucionalizados e sem fins lucrativos. 

Além disso, para estar apto à inscrição de projetos, é necessário que a organização observe alguns princípios: 

  • Capacidade de estabelecer relações horizontais: o Fundo Positivo busca uma relação construída conjuntamente, trabalhando com o movimento social, e não para o movimento social. Com isso, a ideia é estabelecer uma rede colaborativa pelo país, a partir de relações mais horizontais, de escuta; 
  • Advocacy: todos os programas do Fundo Positivo contam com um viés de advocacy, priorizando ações que tenham o potencial de influenciar políticas públicas; 
  • Conscientização: a conscientização sobre a garantia de direitos de grupos e populações minorizadas também é outro aspecto fundamental observado pelo Fundo nas ações que apoia. 

 

Modelo de seleção 

O modelo de seleção de iniciativas, projetos e ações por parte do Fundo Positivo varia entre edital e carta-convite. 

O edital é utilizado em 80% dos casos com o objetivo de garantir equidade e maior participação de OSCs de todo o território nacional. Já o modelo de carta-convite é utilizado em casos onde não há concorrência, como no caso de redes que congregam diversas organizações em torno de um tema específico, como redes LGBTQIA+, por exemplo. 

 

Seleção e indicadores 

Com o passar dos anos e o crescimento da organização, o Fundo Positivo construiu o seu próprio portal de editais e gestão de projetos. 

Para participar de determinado edital, as organizações devem realizar a inscrição – totalmente online – e enviar os documentos solicitados. Depois do fechamento do período de inscrições, o Fundo Positivo participa somente da primeira etapa da seleção de iniciativas, a etapa de habilitação, na qual há a conferência da documentação e dos critérios de participação e seleção de organizações e projetos aptos a participar. 

Em seguida, todas as demais fases do processo de seleção ficam a cargo de um comitê externo, formado a cada edital por especialistas na temática em questão. O comitê se reúne a portas fechadas e trabalha em duplas, analisando as propostas inscritas a partir de um conjunto de indicadores:

– Replicabilidade; 

– Capacidade da organização de executar o projeto; 

– Sustentabilidade. 

As iniciativas somam pontos, e aquelas que alcançarem um total de sete podem ser apoiadas pelo Fundo Positivo. Nem todas as organizações que podem receber recurso são, de fato, apoiadas, uma vez que cada edital conta com um orçamento determinado. Com isso, o comitê conta com outro modelo de processo decisório: as plenárias. 

Juntos e reunidos, os especialistas devem selecionar um número determinado de iniciativas que o orçamento disponível permite apoiar. Nessa escolha, apenas um critério é observado em 100% dos editais: a regionalidade, ou seja, é necessário ter um equilíbrio de projetos vindos de todas as regiões do país, para que nenhuma seja favorecida ou desfavorecida. 

 

Acompanhamento 

Se a seleção fica quase 100% a cargo de um comitê externo, o acompanhamento dos projetos e ações selecionadas é tarefa do Fundo Positivo, que, enquanto fundo independente, valoriza muito e conta com uma política específica para a etapa de monitoramento e avaliação. 

O acompanhamento acontece pelo portal de editais e gestão de projetos. Cada organização apoiada alimenta, mensalmente, uma planilha com as atividades realizadas naquele período. A ferramenta gera indicadores de impacto e resultado, que posteriormente são analisados pela equipe. 

Além disso, a cada três meses, a instituição envia ao Positivo um relatório parcial, com o objetivo de facilitar esse acompanhamento do que está sendo feito por parte da instituição financiadora. O relatório conta também com uma parte destinada à prestação de contas financeiras. As instituições devem, ainda, executar 70% do recurso enviado para que possam receber a parcela seguinte, caso contrário o próximo recebimento é bloqueado.

O Fundo também escolhe, do total de organizações apoiadas por edital, um número de instituições que receberão visitas presenciais. São visitados projetos que, de acordo com os indicadores gerados pelo sistema, estão enfrentando algum tipo de dificuldade, e também projetos que estão caminhando bem. 

Quanto ao prazo do apoio, cada edital conta com um período específico. A maioria teve uma duração entre oito e 12 meses. No futuro próximo, a instituição tem planos de testar apoios de 18 meses, considerando que, nos últimos anos, conseguiu estabelecer parcerias e contratos de maior prazo com fontes financiadoras. Em casos de aditivos para estender a parceria entre o Fundo Positivo e a organização apoiada, é pactuado caso a caso.

 

O Fundo Positivo enquanto captador de recursos 

 

>Fontes e formas de captação 

O Fundo Positivo dedica grande parte do tempo à captação junto a empresas e fundações nacionais e internacionais. 

Além disso, em quase 100% dos casos, o apoio ao Fundo é realizado a partir de uma relação direta, isto é, o Fundo Positivo quase não participa de editais, mas entra em contato com as organizações que identifica que financiam projetos e temáticas semelhantes às trabalhadas pelo Positivo para alinhar um possível apoio. 

Além disso, a mesma relação horizontal que tenta estabelecer com as organizações da sociedade civil que apoia, o Fundo Positivo busca garantir também com seus financiadores e apoiadores. 

 

>Acompanhamento e reportes 

O Fundo Positivo se adapta ao modelo de acompanhamento estabelecido por cada apoiador. Entretanto a grande maioria exige um relatório narrativo, financeiro e auditoria externa da instituição, que é realizado a partir dos relatórios que o Positivo recebe de seus apoiados, e uma auditoria externa, que pode ser geral, da instituição como um todo ou específica de cada apoiador. 

 

>Boas práticas 

Entre as principais boas práticas do Fundo Positivo enquanto um fundo independente que capta recursos estão: 

  • Investir na captação de recursos junto ao investimento social privado brasileiro, o que possibilitou ao Fundo uma experiência consolidada de financiamento e cooperação com empresas locais; 
  • Estabelecer relações horizontais e de respeito com financiadores e seus apoiados;
  • Prezar pela construção coletiva; 
  • Atrelar o financiamento de ações ao fortalecimento institucional, ou seja, apoiar organizações aportando recursos financeiros, mas também disponibilizando formação em metodologia de acompanhamento, monitoramento e avaliação e advocacy

 

APRENDIZADOS

O Fundo Positivo acumula uma caminhada de nove anos apoiando organizações da sociedade civil em prol da saúde preventiva e observando as diversidades que marcam a população brasileira. Em quase uma década, foram diversas experiências e aprendizados importantes: 

 

Escutar a base 

Realizar editais que não conversam com as demandas dos territórios seria tempo e recurso perdidos. Por isso, o Fundo Positivo investe em processos de escuta ativa das reais necessidades, com as pautas, agendas e temáticas das organizações da sociedade civil antes de lançar uma linha de financiamento. 

 

Perspectiva do compartilhamento 

O Fundo Positivo costuma dizer que não trabalha para o movimento social, mas com o movimento social. A ideia, portanto, não é favorecer uma ou outra organização, mas, sim, investir no fazer em conjunto para promover a melhoria, desenvolvimento e fortalecimento do campo social. 

 

Mais do que aporte de recursos 

Com o passar dos anos, o Fundo Positivo percebeu o que o grantmaking vai além do aporte de recursos, mas se relaciona também a um processo de construção de relações que fortalecem o campo social e da filantropia, os movimentos e organizações de base. Anualmente, o Fundo promove encontros com as organizações apoiadas, e nessas ocasiões percebe mais claramente que existe uma rede de instituições que colaboram entre si. 

 

Grantmaking e política pública 

A temática de atuação do Fundo Positivo ajudou a instituição a perceber que o grantmaking pode ser um importante aliado para influenciar positivamente as políticas públicas. Se há 10 anos existia apenas uma lei que resguardava os direitos de pessoas LGBTQIA+ no Brasil, hoje, graças ao movimento social que atua nessa agenda, são inúmeras leis que defendem esse grupo. 

 

Desafio que permanece

Um dos desafios ainda presentes para o Fundo Positivo é mudar a percepção, de parte da sociedade, de que um fundo independente é um mero intermediário, um repassador de recursos, um prestador de serviços. O Fundo Positivo busca ressaltar que a organização está junto com o movimento social, produzindo narrativas, conhecimento, intervindo na política pública e gerando advocacy