Dentre os vários adjetivos utilizados para qualificar a filantropia (como estratégica, de risco, colaborativa etc.), o “comunitária” talvez seja o que mais democratiza o conceito. Isso, porque quando se estimula que a doação e a generosidade realizada pelas pessoas tenha como foco o próprio território em que elas se encontram, o resultado tende a ser uma comunidade mais fortalecida e resiliente, com maior capacidade até para contribuir com iniciativas fora dela.
E é esse princípio que fez do Dia de Doar, atualmente, o principal disseminador da filantropia comunitária no país.
Para quem não conhece, ao invés de ser uma iniciativa tradicional, centralizada, com uma mesma mensagem e narrativa que se repete independentemente do público, o Dia de Doar é um movimento diverso e de múltiplas oportunidades.
Para as organizações sem fins lucrativos de todo o país, funciona como um grande estímulo para captação de recursos, que pode trazer resultado ou não para a instituição, a depender da sua estratégia, engajamento com seu público etc.
Já para as empresas, o Dia de Doar, a versão brasileira do movimento internacional GivingTuesday, é um bom argumento para promoverem a generosidade dos seus funcionários, dos fornecedores, acionistas e, claro, da sua base de clientes.
E funciona muito bem também para órgãos públicos, para igrejas, sindicatos etc.
Essa é uma das características principais do Dia de Doar e, muitas vezes, uma das mais difíceis de ser compreendida: a de que é um movimento aberto, descentralizado, no qual cada um participa à sua maneira. Por isso não há um único Dia de Doar, há milhares, em todo o país, alcançando milhões de pessoas com uma ideia singela e poderosa: temos que ser generosos sempre.
Esse espírito descentralizado e inovador do Dia de Doar deu origem a algo que não se imaginava em seu início no país, mas que acabou surgindo naturalmente, tornando a iniciativa o maior programa de estímulo à filantropia comunitária do Brasil (e, vale dizer, o mais barato também, como será explicado mais à frente).
A filantropia comunitária faz-se presente quando há a mobilização de recursos voluntários da comunidade para o desenvolvimento da própria comunidade (ou seja, doações locais). Jenny Hodgson e Anna Pond entendem a filantropia comunitária tanto como força e como forma de construção de confiança, recursos e ativos locais (…), dando à comunidade local mais controle sobre seu próprio destino (2018, p. 3).
Já para a Rede Comuá (nome atual da então Rede de Filantropia para a Justiça Social), a filantropia comunitária está associada a noções que incluem, dentre outras: a) investimento de recursos financeiros e outros ativos locais; b) o foco em questões locais para o desenvolvimento; c) o fortalecimento do poder comunitário e de lideranças locais (2019, p. 21).
Tudo isso está presente no que o Dia de Doar estimula, mas não é habitualmente visto de forma espontânea na maioria dos países chamados de não-desenvolvidos, como o Brasil. Por isso, é comum se fazerem presentes por aqui fundações internacionais (em geral norte-americanas) que acreditam na filantropia comunitária e trazem o conceito e dinheiro de fora para estimular iniciativas nacionais no tema.
De forma geral, as fundações internacionais acreditam que, para a filantropia comunitária se consolidar, é preciso que ela seja institucionalizada em organizações denominadas “fundações comunitárias”, seriam criadas pela comunidade e financiadas pela própria comunidade. Na prática, e com raras exceções (como o ICOM, em Florianópolis), a institucionalização da filantropia comunitária no Brasil tem dado origem a organizações que se mantém dependentes de recursos de fora da comunidade – em especial das próprias fundações internacionais que as apoiaram na sua criação – e que têm baixa capacidade de engajamento local.
O Dia de Doar inverte esse jogo.
Por iniciativa das próprias localidades, que desde 2014 têm se apresentado voluntariamente para liderar iniciativas locais do Dia de Doar, surgiram as campanhas comunitárias.
As campanhas comunitárias são mobilizações realizadas dentro dos territórios, no engajamento das pessoas que lá residem, para que doem e impactem positivamente a sua própria comunidade.
Elas não seguem uma regra unificada e não exigem burocracia para acontecerem, e em cada comunidade a campanha é organizada de acordo com a realidade local, capacidade das lideranças locais e estrutura disponível.
A primeira campanha comunitária do país foi o “Dia de Doar Limeira”, que apareceu espontaneamente, inspirada no Dia de Doar. E, por muito tempo, a mais conhecida de todas foi a “Doa Sorocaba”, da cidade de mesmo nome, no Estado de São Paulo, que chegou a ser citada no livro do co-fundador do GivingTuesday, Henry Timms (2018, p. 51).
Aos poucos elas foram se espalhando por todo o país e se diversificando. Vieram as campanhas de bairro, como o “Doa Leopoldina” (da Vila Leopoldina, na cidade de São Paulo), as campanhas estaduais, como a “Doa Sergipe”, e até as campanhas temáticas, como o “Dia de Doar Kids”, que estimula a generosidade das crianças e jovens no país.
Suas lideranças têm os mais variados perfis: são pessoas da comunidade, de organizações locais ou às vezes até sem vínculo algum com ONGs; lideram empresas; ou, em alguns casos, são representantes da administração pública local, como na “DoaSãoJosé” e na campanha “Dia de Doar Gramado”, que até hoje é conduzida por um vereador da cidade.
São todas independentes, em que a tomada de decisões e o protagonismo são da própria comunidade, além de estimularem a formação e/ou o fortalecimento de alianças e redes locais.
Em 2022 foram realizadas campanhas em todas as regiões do país. Juntas, resultaram em pelo menos 181 mil reais mobilizados e 58 toneladas de alimentos doadas (ABCR, 2022), além de engajarem milhões de pessoas, com diverso eventos realizados, cobertura da mídia local e muito mais.
Em São Luís (MA), por exemplo, o resultado do trabalho realizado por dezenas de lideranças juntas foi uma ação de dia inteiro em um dos principais pontos comerciais da cidade, que sensibilizou milhares de munícipes para que doassem para organizações locais. O “DiadeDoarSãoLuís” não parou por aí e as pessoas continuaram juntas e atuantes, chegando inclusive a conseguir barrar a alteração de uma lei municipal que prejudicaria o financiamento das instituições da cidade.
Já em Itu, no interior de São Paulo, várias organizações se juntaram e fecharam uma das principais praças da cidade para realizar um domingo de incentivo à generosidade, com shows, apresentações culturais, feira de ONGs etc.
Liderado pela Associação Brasileira de Captadores (ABCR) desde 2014, e parte do ecossistema do Movimento por uma Cultura de Doação, o Dia de Doar em 2022 contou com menos de 40 mil reais para apoiar diretamente e promover as campanhas comunitárias pelo país.
Com menos estrutura e recursos que outras iniciativas que atuam no tema e que são financiadas com capital internacional, o Dia de Doar desenvolve suas atividades com o que é mobilizado localmente pela equipe da ABCR, lidando com a realidade nacional de poucas pessoas – físicas e jurídicas – investindo no fortalecimento da estrutura da filantropia.
Para conseguir ganhar escala organicamente o Dia de Doar optou por falar diretamente com as comunidades e organizou duas ações principais: uma rodada de encontros dentro dos próprios territórios (foram mais de 20 palestras pelo país) e um edital de apoio às campanhas comunitárias, que escolheu 34 delas para receberem 500 reais para alavancar os movimentos locais.
O resultado foram 72 campanhas comunitárias ativas em 2022, cada uma criando a sua própria mobilização, conversando diretamente com a população e construindo seus estímulos únicos de incentivo à doação.
Essas são algumas das características que fazem com que o Dia de Doar seja hoje o principal programa brasileiro de incentivo à filantropia comunitária no país, ainda que ao mesmo tempo também o mais “barato” e com melhor “custo benefício” de todos – de acordo com Relatório do Dia de Doar 2022, o retorno em doações gerado pela sociedade foi pelo menos 23 vezes maior que o investimento realizado no ano pela ABCR.
Mas o estímulo que o Dia de Doar dá à filantropia comunitária não deve ser visto como um fim em si mesmo, e sim o começo de um permanente movimento de fortalecimento do território para que este se aproprie dos recursos disponíveis e construa seu próprio caminho de generosidade.
Por isso, é fundamental seguir apoiando tanto novas campanhas, como a institucionalidade da filantropia comunitária, estimulando o surgimento das fundações locais e outras iniciativas semelhantes.
Ou seja, não é sobre ações isoladas ou conquistar financiadores e/ou marcas relevantes para financiar cada projeto próprio. É sobre construir a consciência nas pessoas de que a mudança começa na própria comunidade, a partir da iniciativa delas, da mobilização do território, e sempre de dentro para fora – nunca ao contrário. E é isso que o Dia de Doar proporciona.
João Paulo Vergueiro é diretor para América Latina e Caribe do GivingTuesday e professor da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP).
Referências
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CAPTADORES DE RECURSOS. Dia de Doar mobiliza mais de 28 milhões de pessoas, com ações comunitárias em 72 cidades e abrangência em todas as regiões do país. São Paulo, 2022. Disponível em https://captadores.org.br/abcr/dia-de-doar-mobiliza-mais-de-28-milhoes-de-pessoas-com-acoes-comunitarias-em-72-cidades-e-abrangencia-em-todas-as-regioes-do-pais/. Acessado em 11 de março de 2023.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CAPTADORES DE RECURSOS. Relatório do Dia de Doar 2022. São Paulo, 2023.
HODGSON, J. e POND, A. How Community Phylanthropy Shifts the power. [S.l]: Grantcraft – Leadership Series, 2018.
REDE DE FILANTROPIA PARA A JUSTIÇA SOCIAL. Expandindo e fortalecendo a filantropia comunitária no Brasil. Rio de Janeiro: Ape’Ku, Selo Doar para Transformar, 2021. 2ª edição.
TIMMS, H. e HEIMANS, J. O novo poder. São Paulo: Editora Intrínseca, 2018.