Minha trajetória profissional na filantropia brasileira começou trabalhando com editais. Contratado por uma organização britânica que estava reabrindo seu escritório no país, eu era responsável tanto por prospectar oportunidades com financiadores internacionais como por gerir projetos apoiados por essas mesmas instituições.
Foram alguns anos de dedicação a essa que é uma das formas mais disseminadas na filantropia mundial de se escolher organizações e projetos para serem financiados.
Aprendi muito nesse período, e aprendi bastante depois também, quando passei a me dedicar cada vez mais a estudar e entender a sustentabilidade financeira das organizações da sociedade civil, seja pelo olhar de quem capta (meu campo profissional, como diretor executivo da Associação Brasileira de Captadores de Recursos – ABCR), como pelo olhar de quem doa (inicialmente meu campo de estudo acadêmico, que depois se juntou também ao profissional, já que a própria ABCR hoje atua em todo o espectro da sustentabilidade).
Para mim, os editais são uma das formas mais objetivas e democráticas que existe, porque aproxima em condições de oportunidade aqueles que se candidatam ao apoio do financiador, e diminui a possibilidade de se perpetuar algo que invariavelmente acontece: o apoio financeiro dentro da “bolha” – financiadores aportando recursos sempre nas mesmas organizações (que, às vezes, mantêm as mesmas lideranças), por décadas a fio. É o que eu chamo de “filantropia do compadrio”, infelizmente ainda comum em parte da estrutura de investimento social privado brasileira.
Mas por mais que eu goste de editais como modelo de seleção objetiva de organizações e projetos a receberem apoio, eles não estão livres de vícios.
Um dos problemas principais, e que mais me incomoda ao ver um edital, é quando eu percebo que o financiador vai gastar mais no processo inteiro do que vai efetivamente doar. Sim, há editais que são “caros” e demandam uma equipe e estrutura muito grandes para sua efetivação, tornando-os completamente ineficientes. Eu já vi, por exemplo, edital que concedia passagens de avião no qual o financiador visitava – de avião – as organizações candidatas para então decidir quais iriam receber, no máximo, duas dezenas de passagens.
Outro problema é a burocracia. Até hoje é muito comum financiadores exigirem uma grande lista de documentos antes mesmo de analisar as propostas apresentadas. E aí a instituição recebe centenas, às vezes milhares de candidaturas e documentos, quando poderia pedi-los só depois de decidir 10 ou 20 finalistas que realmente terão mais chances de serem contemplados.
Por fim, tem a cultura da dependência. A regra deveria ser simples e mais ou menos assim: financiamento maior para organizações maiores, financiamento menor para organizações menores, sempre proporcional ao tamanho da receita anual da organização. Mas não foram poucas as vezes em que eu vi editais financiando com grandes valores organizações com receita anual pequena. E isso significa fazer da organização fortemente dependente do financiador, uma das piores coisas que alguém que está doando recursos pode querer.
Muito bem. Mas esses são alguns dos problemas que eu habitualmente identifico ao observar os editais de financiamento, e poderia até indicar alguns outros tantos, mas esse não é o objetivo deste texto. O objetivo deste curto artigo é mostrar que, não obstante tudo isso, os editais estão melhorando, e um dos motivos para isso é a emergência trazida em razão da pandemia da Covid-19.
Como ficam os editais em tempos de pandemia?
De fato, com o coronavírus não dá para esperar: um financiador que queira escolher organizações para receber o seu apoio – seja em dinheiro ou em produtos – não dispõe de meses para finalizar um processo completo de edital. Ele tem que agir logo e, por isso, tem que ser menos burocrático. E isso está acontecendo nos vários editais que tenho analisado.
Essa agilidade na decisão também torna o processo como um todo muito mais barato e prático. As decisões são rápidas, as exigências são menores – e a própria pandemia impede práticas que, no meu entender, já eram anacrônicas antes, como visitar as organizações para conhecê-las mesmo quando o tamanho do financiamento é pequeno.
Também me parece que os financiadores têm sido muito inteligentes na escolha das organizações e projetos que vão financiar. De forma geral, há muitos editais apoiando pequenos projetos, sejam de base comunitária ou local, abertos a organizações também com poucos recursos e estrutura. E, por outro lado, há editais que financiam grandes volumes que estão acessíveis a grandes organizações.
E, parece-me, a urgência trazida pela pandemia fez praticamente sumir algo que particularmente me incomoda no processo dos editais, mas que estava se tornando cada vez mais comum: o envio de vídeos para seleção.
Ainda que seja impossível não reconhecer que estamos todos praticamente conectados o tempo todo, e que a linguagem visual é muito mais fácil de desenvolver que a linguagem escrita, selecionar organizações e projetos por meio de vídeos personaliza o processo, o que o torna muito mais frágil.
No vídeo, mesmo que de forma involuntária, o risco de se deixar atrair por critérios subjetivos é muito grande. A forma como o vídeo é editado, o perfil de quem fala, o carisma de quem aparece na tela, etc. Tudo isso são fatores que chamam a atenção de quem seleciona, e proporcionam que apareçam vieses que não deveriam fazer parte de um processo que, pelo menos, se pretende objetivo de seleção. Sem vídeos, as escolhas são mais equilibradas e levam em consideração apenas o que realmente deve ser considerado: a proposta apresentada.
Para além dos editais
Mas a relação entre financiadores e organizações apoiadas não é feita só por editais, e a pandemia tem proporcionado boas iniciativas que vão além deles, mesmo em um momento que os financiadores não têm muito tempo para escolher.
Um dos exemplos são as campanhas de financiamento coletivo.
Esse período do coronavírus contribuiu para reforçar três maneiras distintas de se apoiar a sociedade civil: a) por meio de iniciativas de matching (se você doar, eu doo também); b) a partir de campanhas de incentivo à doação dentro da estrutura organizacional do próprio financiador – geralmente, doação de funcionários de empresas; e c) o acesso à base de clientes do investidor social para ampliar o número de doações.
Nas campanhas de matching temos exemplos como a Salvando Vidas, do BNDES, provavelmente a maior campanha com esse modelo no país, no qual o banco vai doar até 50 milhões de reais, sendo 1 real para cada real doado na plataforma online. O foco nessa campanha são hospitais.
Outro exemplo é o Matchfunding Enfrente, liderada pela Fundação Tide Setubal, na qual são doados 3 reais para cada real doado na plataforma. Organizações de base comunitária e social que queiram participar da Enfrente devem se cadastrar no site, que já lista dezenas delas aptas a receber as doações – eu mesmo já contribuí com algumas.
No que diz respeito a campanhas de doação de funcionários, os exemplos são vários também. Institutos corporativos, como o CCP e o Cyrela fizeram mobilizações internas e arrecadaram centenas de milhares com seus colaboradores – em alguns casos fazendo, elas também, matching do valor arrecadado. O mesmo aconteceu com empresas, como a Engie, do setor de energia.
Mas, sem dúvida, a iniciativa mais interessante, inovadora e impactante foi a mobilização da base de clientes dos investidores sociais para estimular a doação – em especial das empresas. De forma geral, elas até já ofereciam a possibilidade de se realizar doações por meio da sua estrutura corporativa, o que foi alavancado enormemente nos últimos meses. A Fundação Banco do Brasil, por exemplo, mobilizou mais de 17 mil clientes da sua mantenedora, o banco de mesmo nome, e de outros parceiros corporativos e institucionais. O Uber Eats gerou mais de 450 mil reais em doações de refeições de seus clientes, e o iFood alcançou quase 1 milhão de reais em doações em abril, com 88 mil doadores distintos em sua base de clientes. Um número enorme para uma ação de um aplicativo de celular.
Todas essas iniciativas contribuem para transformar a relação entre o financiador e quem é financiado, o doador e quem recebe a doação. E são muito, muito positivas, estando todas listadas no Monitor das Doações COVID 19, iniciativa da ABCR que já identificou mais de 5 bilhões de reais em doações nesse período, e 330 mil doadores.
Elas proporcionam que a filantropia brasileira se expanda para além dos atores tradicionais. Elas incorporam tecnologia, ampliam a comunicação, aproximam o doador do impacto a ser gerado.
De forma geral, um dos impactos imprevistos da pandemia é uma certa “democratização” do investimento social privado. Agora, todo mundo pode se sentir filantropo, escolhendo causas e acompanhando de perto o impacto que está gerando.
Isso é diferente e, até certa forma revolucionário, considerando o que tínhamos até então. Se essas práticas de doação vão se consolidar não sabemos ainda, mas certamente estamos todos trabalhando para que isso aconteça.