Panorama da relação entre investidores sociais e organizações da sociedade civil

 4 de julho de 2023 
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Por Pamela Ribeiro e Patrícia Kunrath

Fortalecer OSC como papel central da filantropia

Organizações da sociedade civil (OSC), movimentos sociais e coletivos têm um importante papel na manutenção e fortalecimento da democracia brasileira na medida em que defendem e promovem direitos básicos e essenciais à vida humana. Para que cumpram suas missões e exerçam suas atividades, precisam de autonomia.

Em anos mais recentes, com a chegada da direita conservadora ao Governo Federal, a autonomia de atuação e até mesmo a própria existência das OSC foram colocadas em risco em razão dos sistemáticos ataques a estas organizações e suas lideranças e dos sucessivos desmontes dos espaços participativos da agenda pública. O que vemos hoje é uma massiva descrença no governo e uma reforçada confiança nas empresas e nas OSC enquanto instituições, conforme retratado na edição mais recente do Edelman Trust Barometer.

Portanto, neste momento de reafirmação da democracia brasileira e retomada da agenda socioambiental, o investimento social e a filantropia têm, mais do que nunca, o importante papel de contribuir para a sustentabilidade financeira e o fortalecimento das organizações da sociedade civil.

A última edição do Censo GIFE, com dados referentes ao ano de 2020, mostrou que 81% dos 131 respondentes apoiaram organizações da sociedade civil por meio de diferentes estratégias, envolvendo ou não recursos financeiros. Uma parcela um pouco menor, mas ainda significativa de investidores sociais (64%), repassou recursos financeiros para organizações da sociedade civil, chegando ao montante de R$2,16 bilhões. Esse é um volume bastante expressivo, considerando que os investimentos sociais totais somaram R$5,3 bilhões naquele ano.

Porém o número em si não é suficiente para afirmar que as organizações da sociedade civil foram de fato fortalecidas por meio do apoio. A proposta deste artigo é, portanto, refletir sobre os caminhos possíveis e necessários para o fortalecimento das OSC.

 

Estratégias e Formatos de apoio

O grantmaking, entendido aqui como o repasse de recursos financeiros, de forma estruturada, para organizações ou iniciativas de interesse público, é uma importante estratégia de atuação da filantropia e do investimento social privado para o fortalecimento de organizações da sociedade civil. Diferentes estratégias de apoio estão presentes no grantmaking brasileiro. 

A estratégia de apoio mais frequente entre atores da filantropia e do investimento social privado é a programática. O Censo GIFE 2020 mostrou que 63% dos respondentes optaram por apoiar iniciativas de OSC de forma pontual/ eventual, 62% apoiaram iniciativas de OSC a partir de linhas programáticas preestabelecidas e/ou processos de seleção/editais regulares e 61% apoiaram OSC via desenvolvimento de iniciativas conjuntas com outras organizações compartilhando autoria, governança e processos de tomada de decisão. Um percentual menor de respondentes (47%) realizou apoio institucional a OSC.

O apoio institucional, desvinculado de iniciativas, conhecido também como financiamento livre ou flexível, é uma importante estratégia do grantmaking para o fortalecimento de organizações da sociedade civil. Apesar do crescimento observado entre as edições de 2018 (30%) e 2020 (47%) do Censo GIFE, é muito pouco difundido ainda na filantropia brasileira. 

Por trás do apoio institucional ou flexível está a crença de que ninguém saberá melhor do que a organização ou iniciativa donatária como melhor aplicar o recurso para gerar impacto. Está também o entendimento de que nenhuma organização ou iniciativa se sustenta no médio ou longo prazo apenas com recursos programáticos, sem conseguir remunerar seus custos indiretos e investir no seu desenvolvimento institucional.

Um Guia lançado recentemente pelo Edge Funders Alliance e traduzido para o português em parceria com o GIFE aponta 5 aceleradores e 5 barreiras para que as doações passem a ser flexíveis e plurianuais. Entre os aceleradores está o surgimento de crises que acabam por estimular essa estratégia de apoio e, entre as barreiras, está a propensão dos conselhos de fundações e institutos ao controle. Esses são dois temas que abordaremos com mais profundidade nos próximos parágrafos.

 

O apoio emergencial 

As emergências e crises socioambientais, como catástrofes naturais ou a pandemia de Covid-19 que vivemos recentemente, funcionam como catalisadores de doações e ações de solidariedade de forma responsiva. Entretanto o apoio emergencial não se sustenta, tanto em volume de recursos quanto em flexibilidade para sua utilização, quando olhamos no longo prazo.

Apesar de um fluxo maior de recursos no contexto da pandemia, as OSC encontravam uma série de dificuldades para manter suas estruturas e operações. Isso significa que, apesar do setor ter doado maiores volumes, estes ainda não focaram em estratégias de longo prazo e de manutenção e saúde financeira das OSC.

Um debate que vem se colocando no campo do ISP e da filantropia, na sua relação com as OSC e nas práticas de grantmaking, é o do repasse de recursos em momentos de emergências em contraposição ao repasse sistemático para o apoio ao desenvolvimento sustentável (inclusive apoiado na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas). 

O chamado apoio emergencial se caracteriza por acontecer de forma pontual em resposta a adversidades climáticas, crises econômicas ou sanitárias ou de outra natureza que acometem uma comunidade ou população num determinado momento em sua história.

Entendemos que ambas formas de apoio são essenciais no universo filantrópico, cada uma com suas particularidades e urgências. Entretanto o que vemos muitas vezes acontecer é um pico acentuado de investimentos e repasses de recursos em situações de emergência e um patamar bem mais baixo de investimentos contínuos, de longo prazo, capazes de mover ponteiros no combate a estruturas de desigualdades.

Não foi diferente com a pandemia da Covid-19. No Brasil, a partir dos dados dos 131 investidores sociais respondentes do Censo GIFE 2020, 57% das OSC apoiadas financeiramente por eles foram para iniciativas de enfrentamento da Covid-19.

Apesar do volume de recursos repassados a OSC no contexto da pandemia ter aumentado drasticamente, muitos investidores sinalizam ter sido algo pontual devido ao contexto vivido. Dos R$2,16 bilhões repassados a OSC, quase 70% foram para iniciativas de enfrentamento da Covid-19.

Críticas e provocações apontam que os profissionais e voluntários das OSC, de redes, coletivos, movimentos sociais e ativistas eram aqueles que estavam na linha de frente, nos territórios, arriscando muitas vezes suas vidas para levar algumas soluções às populações locais enquanto investidores e suas equipes reduziram operações e puderam ficar em casa.

Quanto ao impacto da Covid-19 no relacionamento com OSC, os investidores sociais apontaram o crescimento no diálogo e nos canais de comunicação com OSC apoiadas, o que deve permanecer após a pandemia. Já a flexibilização das regras para uso dos recursos deve permanecer apenas para 8% dos 39% que adotaram a prática na emergência.

No curto prazo, vemos que os avanços em termos de recursos não significaram propriamente o fortalecimento das OSC e de terceiros apoiados, na medida em que foram pontuais, podendo mesmo ter inchado a estrutura de algumas organizações que posteriormente se viram sem condições de manter as operações estruturadas na emergência. Por outro lado, no médio e longo prazo, parece haver espaço para mais troca, diálogo e aproximação entre investidores e os demais atores do chamado terceiro setor, a fim de se articular cada vez mais de forma colaborativa para o endereçamento de questões sociais complexas.

 

Confiança ou controle?

As formas de fazer doações ou grantmaking por parte de institutos, fundações e fundos para OSC são diversas e são permeadas de valores que se alinham com a cultura da organização, com o perfil do conselho e com premissas de qual deve ser o impacto socioambiental atingido. No entanto, esses valores podem carregar consigo práticas de controle, restrições e limitações para a atuação das OSC parceiras, não as fortalecendo integralmente. 

A partir desse cenário, uma série de iniciativas vêm buscando promover um paradigma de confiança, de compartilhamento de poder e de corresponsabilidade. Muitas vezes associado ao movimento Shift the Power, lançado em 2016 pelo Global Fund Community Foundations (GFCF), o modelo busca transicionar de modelos de desenvolvimento verticais, de cima para baixo, para modelos baseados nas pessoas e suas comunidades.

Da mesma forma, foi lançado em Janeiro de 2020 o Trust-Based Philanthropy Project (TBPP) para endereçar desequilíbrios de poder entre fundações e OSC. O projeto elenca práticas de grantmaking baseadas em confiança e dimensões organizacionais a serem trabalhadas. Doar com confiança é se colocar em uma relação mais profunda e duradoura com as organizações e as pessoas envolvidas em todo o processo.

O Censo GIFE reforça a importância da confiança nas relações entre doadores e donatários, demonstrando que a confiabilidade e transparência das OSC e/ou de seus líderes é o critério prioritário para investidores sociais selecionarem quais organizações apoiar. Entretanto indica também uma tendência na concentração das doações em poucas organizações, mais conhecidas e que acabam tendo mais credibilidade para os doadores.

Tais critérios apresentam um caráter subjetivo. O que funciona em termos de confiabilidade em uma OSC para um determinado financiador pode não funcionar para outro. Da mesma forma, não há um critério de transparência que dê conta da heterogeneidade do setor. Alinhamento de valores e teorias de mudança estruturadas e aplicadas podem ser caminhos para lidar com essa subjetividade na hora de financiar o terceiro setor.

Outra pauta bastante relevante são as barreiras para esse apoio ou os fatores que impedem que ele aconteça. Nessa frente ganham destaque os desafios de monitoramento, avaliação e mensuração das iniciativas das OSC. Fomentar essa pauta, seja por meio da produção e disseminação de conhecimento sobre ela, seja por meio de financiamento para que as OSC possam contratar profissionais avaliadores é fundamental ao desenhar uma parceria de longo prazo.

 

Considerações Finais

Há muito ainda por ser feito para avançar o setor da filantropia e do investimento social privado no reconhecimento de soluções locais e de lógicas distintas de impacto. Muito se discute sobre o modelo de desenvolvimento desejado para a nossa sociedade e para o Brasil. O que muitas experiências apontam é que provavelmente não haja uma resposta única.

Problematizar o conceito de impacto, aproximar-se de organizações e outros atores que estão nos territórios vivendo e trabalhando continuamente, estabelecer vínculos e relações, cultivar confiança, financiar a longo prazo e de forma flexível, oferecer mais do que recursos financeiros, pesquisar, atuar com transparência e ter práticas de escuta são desafios colocados ao setor.

As organizações se encontram em diferentes momentos de suas jornadas em relação às OSC e aos outros atores parceiros. Contudo, olhando para os dados do Censo GIFE, vemos que ainda há uma concentração de execução de projetos próprios que podem não endereçar estruturas de desigualdades que tanto agridem a parcelas imensas da população. 

Mudar essa chave, promover mudanças sistêmicas e fortalecer atores locais podem ser foco de uma filantropia que vem se desenhando transnacionalmente. A troca de práticas e informações é fundamental nesse processo, da mesma forma que a produção de conhecimento para que a filantropia cumpra o papel de apoiar e fortalecer as OSC na sua pluralidade desejada em uma sociedade democrática.

 

Referências

Edelman Trust Institute. 2023 Edelman Trust Barometer – Relatório Nacional. 2023. Disponível em: https://www.edelman.com.br/sites/g/files/aatuss291/files/2023-04/2023%20Edelman%20Trust%20Barometer_Brazil%20Report_POR%20%281%29_0.pdf. Acesso em: 30 mai. 2023.

GIFE – Grupo de Institutos Fundações e Empresas. Censo GIFE 2020. 2021. Disponível em: https://sinapse.gife.org.br/download/censo-gife-2020. Acesso em: 30 mai. 2023.

Funding for Real Change. Acelerando doações equitativas. 2023. Disponível em: https://static1.squarespace.com/static/6261ff415b4a971493f26914/t/64635ce3990d1747e7c1e451/1684233451847/FRC_Portuguese_23.pdf. Acesso em: 30 mai. 2023.

Trust Based Philanthropy Project. Practices. Disponível em: https://www.trustbasedphilanthropy.org/practices. Acesso em: 30 mai. 2023.

 

*Pamela Ribeiro é Coordenadora de Programas no GIFE e Patricia Kunrath é Coordenadora de Conhecimento no GIFE. Imagem do Congresso GIFE.