Por que a filantropia deve apoiar a luta por trabalho digno

 28 de março de 2024 
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Por Ana Valéria Araújo e Amanda Camargo

 

Fundo Labora busca colocar esse debate no centro da pauta democrática, com protagonismo de trabalhadores sem direitos

Em novembro de 2023, o Brasil ultrapassou pela primeira vez a marca de 100 milhões de pessoas que trabalham. Essa informação é da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a PNAD Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desse total, cerca de 40% estão no trabalho informal. São quase 40 milhões de trabalhadoras e trabalhadores sem acesso às garantias sociais mínimas associadas ao trabalho e à contribuição previdenciária. É uma parcela enorme da população brasileira que assume integralmente os riscos relacionados ao trabalho, que não tem como pressionar por remuneração justa, limitação de jornada, licença maternidade, auxílio-doença e aposentadoria, entre outros direitos.

Um cenário que, no contexto de um país que se constituiu sobre a desigualdade racial, de gênero e territorial, reserva os piores indicadores para a população negra, para povos indígenas, das florestas e das águas, para as mulheres, as pessoas LGBTQIAP+ e pessoas com deficiência. 

É por meio do trabalho que se acessam as condições de uma vida digna. Mas a regulamentação do trabalho vem se deteriorando nos anos recentes. Assim, a luta por trabalho digno é, acima de tudo, a luta por um país mais democrático e justo. 

No fim de 2022, o Fundo Brasil de Direitos Humanos lançou o Labora – Fundo de Apoio ao Trabalho Digno. Labora é um fundo criado a partir de um esforço conjunto com Laudes Foundation, Fundação Ford e Open Society Foundations, com objetivo de fortalecer organizações das diversas categorias de trabalhadores, movimentos sociais que abordam a pauta do trabalho, sindicatos e afins. Essa iniciativa completou um ano em dezembro de 2023. Ao longo do primeiro ano de trabalho, acolheu aprendizados, encontrou novos desafios, propôs caminhos para destinar recursos à base da sociedade que se organiza por mudanças e firmou uma certeza: a filantropia tem uma importante contribuição a dar na busca por melhores condições de trabalho, dignidade e por mais democracia no país. 

 

Neste artigo você vai ler:

  • O contexto complexo de um país de trabalhadoras e trabalhadores
  • Exemplo emblemático: o caso das trabalhadoras domésticas
  • Labora surge da união de fundações financiadoras
  • Um ano depois: recursos nas mãos de quem propõe a mudança
  • Aprendizados sobre um conceito plural e seus desdobramentos

 

O contexto complexo de um país de trabalhadoras e trabalhadores

O Brasil tem mais de 100 milhões de pessoas que trabalham: nos cuidados com a casa e a família, nas ruas, no comércio, na agricultura, no extrativismo, em empresas e outras instituições, no campo, nas cidades e nas florestas.

Mas as condições de trabalho e de proteção social acessadas por boa parte da população não são as mesmas. As desigualdades sociais que caracterizam a sociedade brasileira, marcada por racismo, sexismo, discriminação lgbtfóbica e capacitismo, têm efeitos profundamente negativos sobre as diferentes experiências cotidianas de trabalho. Trabalhadoras e trabalhadores estão sujeitos à precarização, às violações de direitos e à exclusão social.

Essas desigualdades não são novas. Mas têm sido agravadas no último período, como discutimos em artigo sobre a urgência do debate sobre trabalho digno e inclusão, na série ISP em Debate, organizada pelo GIFE.

Naquela oportunidade, apontamos a centralidade da garantia do trabalho digno e proteção social no Brasil para a redução das desigualdades no país e, portanto, para o fortalecimento de nossa democracia. 

Refletimos também sobre os desafios impostos pela deterioração das garantias trabalhistas e sociais observadas nos últimos anos, sobretudo com os impactos das reformas trabalhista e previdenciária, que reduziram o horizonte possível das condições dignas de trabalho e vida para boa parte dos trabalhadores no Brasil.

A desigualdade cotidiana vivida por trabalhadores na informalidade inclui: relações informais; contratos sem regulamentação e sem margem para negociação de valores; jornadas sem limitações; pagamento apenas sob demanda, gerando profunda instabilidade de renda e de vida; aumento de acidentes e adoecimento relacionados ao trabalho; e individualização da experiência cotidiana do trabalho e da identidade enquanto pessoa trabalhadora. 

Os dados refletem a super-representação de homens e mulheres negras na informalidade, com 46,1% da população negra ocupada trabalhando nessa condição (46,5% para mulheres negras especificamente), marca das desigualdades raciais que estruturam o acesso a trabalho digno no país. Discrepância se observa ainda em relação às diferentes regiões do país, com o Norte e o Nordeste apresentando maiores concentrações de trabalho informal.

No caso das pessoas com deficiência (PCD), a PNAD Contínua de novembro de 2023 apresentou pela primeira vez dados sobre a sua inserção no mercado de trabalho. De um total aproximado de 17,5 milhões de pessoas com 14 anos ou mais (idade economicamente ativa), em sua maioria autodeclaradas negras, mais de 12 milhões estavam fora do mundo do trabalho. Esse fator contribui para a desigualdade social vivida pelas pessoas com deficiência e para a redução de sua autonomia e independência.

 

Exemplo emblemático: o caso das trabalhadoras domésticas

Em 2022, aproximadamente 6% da força de trabalho no Brasil estava no trabalho doméstico. Quase 6 milhões pessoas, das quais 91,4% mulheres, em sua maioria negras (67,3%), traço do passado escravocrata do país, como apontado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) em levantamento de abril de 2023.

Dez anos atrás, as trabalhadoras domésticas conquistaram direitos trabalhistas como a limitação da jornada de trabalho a 44 horas semanais, proteção contra demissão sem justa causa, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), estabilidade para gestantes e seguro contra acidentes de trabalho. Essas garantias, já asseguradas aos trabalhadores urbanos formais na Constituição Federal de 1988, foram previstas na Emenda Constitucional nº 72/2013 (a chamada “PEC das Domésticas”), e regulamentadas pela Lei Complementar nº 150/2015. Em outras palavras, a garantia de condições mínimas de trabalho digno para as trabalhadoras domésticas somente foi alcançada em 2013, após décadas de mobilização coletiva e incidência política da categoria, organizada em sindicatos e movimentos sociais.

Mas, mesmo com o avanço na legislação, em 2022, apenas 24,7% das trabalhadoras tinham carteira de trabalho assinada e acessaram os direitos listados acima. A legislação exclui da formalidade as pessoas que não trabalham um mínimo de 3 dias em uma mesma residência. Hoje, portanto, mais de 70% da categoria está em situação informal, recebendo remuneração muito inferior à média das trabalhadoras em contratos formais: enquanto a média da remuneração para trabalhadoras domésticas informais era de R$850,00 ao mês para mulheres negras e R$1.042,00 para mulheres não negras em 2022, no trabalho formal essa remuneração sobe para R$1.448,00 (mulheres negras) e R$1.534,00 (mulheres não negras).

 

Labora surge da união de fundações financiadoras

Foi nesse complexo contexto que em 2022 um grupo de financiadores se uniu para criar o Labora – Fundo de Apoio ao Trabalho Digno, uma iniciativa ancorada na premissa de que uma sociedade civil organizada e fortalecida é fundamental para reconstruir direitos sociais corroídos, pautar a centralidade do trabalho na agenda democrática e imaginar novos paradigmas capazes de garantir trabalho digno e sistemas de proteção social, com justiça racial e de gênero, para todos.

O movimento de criação do Labora foi puxado pela Laudes Foundation, cujas iniciativas no Brasil historicamente já se voltavam à pauta do trabalho digno. Considerando a centralidade do trabalho para a ameaçada democracia brasileira e para o debate sobre justiça climática que se faz urgente e determinará o acesso às condições justas de reprodução da vida no país nos próximos anos, Open Society Foundations e Fundação Ford aderiram à proposta e a ela destinaram recursos. O Fundo Brasil de Direitos Humanos reunia repertório de parcerias anteriores com as três fundações e, especificamente com a Laudes, experiência de financiar e fortalecer o trabalho autônomo de coletivos e organizações de base para o combate ao trabalho infantil na indústria da moda. O Fundo Brasil foi, então, selecionado para criar e implementar o primeiro fundo brasileiro voltado exclusivamente ao fortalecimento de organizações, movimentos sociais, sindicatos e coletivos em sua luta por trabalho digno e proteção social no país.

A premissa central do Labora é canalizar recursos e oferecer oportunidades de formação e articulação para a sociedade civil organizada nessa agenda. São fundamentais para o Labora o protagonismo e autonomia das próprias categorias de trabalhadores informais e precarizados e de suas formas de auto-organização e associação, bem como a perspectiva interseccional, que entende os marcadores sociais da diferença (raça, gênero e identidade de gênero, território, deficiências) e suas intersecções como fundamentos da desigualdade no país, que se expressa de modo determinante no mundo do trabalho. 

 

Um ano depois: recursos nas mãos de quem propõe a mudança

No período de um ano, o Labora assumiu um conjunto de 14 grandes apoios ao campo antes geridos pela Fundação Laudes. Lançou o primeiro edital de apoio a projetos, chamado de Fortalecendo Trabalhadores Informais na Luta por Direitos. Com esse conjunto de ações, no primeiro ano foram doados aproximadamente R$ 7.600.000,00 (sete milhões e seiscentos mil reais) para 39 organizações, sindicatos, coletivos e movimentos sociais apoiados.

Respondendo às demandas do campo, o Labora lançou uma linha de apoio complementar às organizações com projetos em andamento. Essa linha se destina especificamente a fortalecer ações de mobilização coletiva, incidência política, participação social e articulação. Mais de R$130 mil foram doados às iniciativas apoiadas pelo Labora para participar de espaços estratégicos: encontros nacionais, reuniões com o poder público, participação em eventos de articulação e debates intersetoriais, entre outros.

Em dezembro de 2023, o Labora lançou o segundo edital, mantendo o foco em apoiar a organização autônoma das categorias de trabalhadoras e trabalhadores precarizados e informais, como as já mencionadas trabalhadoras domésticas, trabalhadores de plataforma digitais, pessoas com deficiência, população LGBTQIAP+, sobretudo as mulheres trans negras e periféricas, entre outras. Foram selecionadas para apoio 40 organizações com propostas voltadas ao seu fortalecimento institucional e a ações de incidência política cuja finalidade seja o desenvolvimento ou fortalecimento de normas e políticas públicas mais justas no campo do direito do trabalho e proteção social. No total, o segundo edital vai doar R$2.650.000,00 (dois milhões, seiscentos e cinquenta mil reais).

O Labora também promoveu momentos de escuta ao campo para refinamento de estratégias e troca de experiências. Reunimos organizações apoiadas e outros interlocutores relevantes para o debate sobre trabalho digno para discutir desafios e caminhos possíveis para avanços nessa pauta. Nesses espaços, foram abordados temas como a importância de políticas públicas para pessoas com deficiência e a conexão entre trabalho digno e mudanças climáticas.

Em 2024 estão previstos apoios a organizações e pautas estratégicas via cartas convite, bem como intercâmbios para formação e troca de experiências entre os projetos apoiados.

Guiando os passos estratégicos dessa construção está o Comitê Gestor do Labora, que traz para a filantropia uma novidade: é composto pela gestão do Fundo Brasil e por representantes dos parceiros financiadores – Laudes Foundation, Fundação Ford e Open Society Foundations. Desde sua implantação em fevereiro de 2023, o Comitê tem sido um diferencial do Labora, ao proporcionar uma proximidade única entre financiadores e a equipe do projeto, e um contato sólido e constante deles com o cotidiano do novo fundo e dos desafios que surgem no processo. Ao acompanhar essa experiência muito de perto, as fundações, por meio de suas integrantes no Comitê Gestor, puderam aprender com as experiências do primeiro ano de atuação, bem como trazer sua ampla experiência filantrópica para contribuir em tempo real com o refinamento das estratégias de atuação do Labora.

 

Aprendizados sobre um conceito plural e seus desdobramentos

O Labora entra em seu segundo ano tendo reunido valiosos aprendizados e diagnosticado desafios importantes para a luta por trabalho digno e proteção social no Brasil, bem como sobre o papel da filantropia nesse complexo cenário.

Aprofundamos o entendimento de que o conceito de trabalho digno é múltiplo e está condicionado às realidades diversas das pessoas que trabalham, seja no campo, nas cidades, nas florestas. Um exemplo são camelôs e ambulantes, categoria para quem trabalho digno inclui fim da repressão violenta às pessoas que trabalham nas ruas, do confisco de mercadorias e do uso de armas pelas guardas municipais. 

Para as trabalhadoras e trabalhadores indígenas, a garantia de terra e território para continuar as práticas ancestrais de reprodução coletiva e proteger a biodiversidade é o primeiro e mais importante passo para garantir trabalho digno. Isso implica derrotar definitivamente a tese do Marco Temporal e garantir a demarcação das terras indígenas.

A compreensão interseccional entre as questões de trabalho, raça, gênero e deficiências fica evidente. Trabalhadoras ambulantes e trabalhadoras indígenas vivenciam cotidianamente violência de gênero e racismo. O mesmo pode ser dito para as mulheres com deficiência e trabalhadoras domésticas.

O discurso do empreendedorismo mascara a fragmentação da identidade coletiva de trabalhadores e enfraquece suas lutas, seus sindicatos, organizações, coletivos e movimentos sociais. 

As desigualdades sociais tendem a se agravar com os impactos das mudanças climáticas, que afetam todas as pessoas, mas pesam desproporcionalmente sobre trabalhadores em atividades no campo, nas ruas, em condições de vida e moradia precárias, entre outros. Também têm peso desigual sobre trabalhadores nos setores da economia que deverão ser transformados para a redução da emissão de gases do efeito estufa, como a exploração de combustíveis fósseis. 

A transição para um modelo econômico mais verde, que se demanda para que a vida no planeta continue viável, impõe o desafio urgente de que isso seja feito de forma justa, sem deixar ninguém para trás. Nesse contexto, as vozes dos e das trabalhadoras precisam ser protagonistas da mudança.

O Labora entende que a filantropia pode e deve desempenhar um papel relevante no reconhecimento e no fortalecimento da autonomia de sindicatos, organizações, coletivos e movimentos sociais de pessoas que trabalham, bem como no fortalecimento de suas vozes e de suas propostas para o debate coletivo sobre o trabalho no país. Em um momento de tantas transformações, a pluralidade de perspectivas e propostas é um ativo valioso na garantia de condições dignas de trabalho e na expansão da rede de proteção social como medidas fundamentais para combater as desigualdades, alcançar a justiça social e fortalecer a democracia no Brasil. 

 

Ana Valéria Araújo, superintendente do Fundo Brasil de Direitos Humanos
Amanda Camargo, coordenadora do Labora – Fundo de Apoio ao Trabalho Digno