Organizações da sociedade civil sustentáveis são fundamentais para manter o tecido institucional onde se instala a construção da democracia, a manutenção da vida no planeta, a garantia do acesso justo a direitos e serviços, o desenvolvimento cultural plural e outras conquistas materiais e imateriais determinantes para nosso processo civilizatório.
Por sustentabilidade de organizações compreende-se a sua capacidade de manter, ao longo do tempo, a produção de impacto positivo. Esta hipótese depende de um conjunto de dimensões que buscam entre si um equilíbrio dinâmico e compreendem a governança, a imagem do futuro organizacional, a saúde e as estratégias financeiras, a conexão com as demandas sociais e a capacidade de manter e desenvolver equipes. Depreende-se, então, que a sustentabilidade tende a ser um estado momentâneo na vida da organização, sendo raros os casos em que se instala como absoluta. Por isso a expressão “comportamento da sustentabilidade” é empregada neste artigo, traduzindo as condições específicas que uma organização reúne em determinado momento e que lhe proporciona maior ou menor conforto na perspectiva de perenizar sua ação. A dimensão econômica ganha especial atenção na interpretação da sustentabilidade por ser uma categoria determinante, ou seja, na sua ausência a vida organizacional está profundamente comprometida. Ao mesmo tempo a dinâmica financeira oferece métricas tangíveis que permitem objetivar o horizonte de sobrevivência organizacional.
Pela sua relevância, a sustentabilidade é motivo de atenção em todas as relações estabelecidas entre organizações financiadoras (ORG FIN) e organizações da sociedade civil (OSC) e se torna pauta de interesse em praticamente todas as avaliações que irão observar impactos e resultados das parcerias estabelecidas entre estas partes, estando inclusive institucionalizada nas cinco dimensões avaliativas propostas pela OCDE (DAC)[1]. Em nossa experiência como avaliadores, entretanto, observamos que depositar o foco da sustentabilidade somente sobre a OSC é impreciso e, em última instância, injusto. Entende-se que este atributo é conquistado continuamente a partir das interações estabelecidas no ambiente em que a organização opera. A sustentabilidade está, desta forma, inserida em um sistema aberto por onde fluem diferentes atores e tipos de energia, sendo necessária uma abordagem complexa para compreender sua dinâmica. Por complexa, ela exige a observação de relações, aspecto que a literatura aponta como central nas análises de sistemas desta natureza.
Este texto nasce da perspectiva de que, no campo da avaliação, a análise de sustentabilidade pode ser ajustada de uma lente focada em conhecer “em que medida as OSC estão sustentáveis” para um olhar sobre “em que medida a relação estabelecida com a organização financiadora criou condições para fortalecer a trajetória de sustentabilidade da organização”. A relação é direta e se forem observadas que tais condições estão criadas ou fortalecidas, pode-se assumir, via proxy, que a organização alcança comportamento mais sustentável.
Para esta análise o artigo apresenta uma proposta de dispositivos que podem alavancar a sustentabilidade caso estejam presentes na relação ORG FIN – OSC. Apesar de nascer no campo da avaliação, o que é aqui defendido é de interesse de outros atores do campo de filantropia, investimento social privado e venture philanthropy, para os quais pode inspirar e orientar formas de construir relações.
Por fim, exige ser mencionado que a consolidação do enquadramento conceitual sugerido neste artigo se deu no curso da avaliação externa da C&A Foundation (C&A Foundation Overall Effective Evaluation, 2019), liderada pela empresa canadense Universalia[2] e na qual a Move teve o privilégio de compor a equipe de trabalho.
Os dispositivos da sustentabilidade organizacional na relação entre ORG FIN e OSCs
A análise sobre “em que medida a relação ORG FIN – OSC contribuiu para alavancar a sustentabilidade das organizações parceiras” deve considerar 6 dispositivos básicos, quais são: (1) suporte institucional; (2) co-financiamento e investimentos alavancados; (3) apoio não financeiro; (4) estratégias de saída; (5) monitoramento e avaliação e (6) duração da parceria.
A natureza destes dispositivos é distinta, destacando-se sua linhagem financeira na qual um desembolso de recursos é feita diretamente da ORF FIN para a OSC (suporte institucional); a natureza política (co-financiamento e investimentos alavancados) na qual a relação da ORG FIN é um ativo para viabilizar novos recursos para a OSC; a origem estratégica, na qual a maior parte está classificada (apoio não financeiro, estratégias de saída e monitoramento e avaliação) e por fim os elementos de natureza temporal, relacionado à duração da parceria, considerado mais desafiador.
A apresentação de cada um dos dispositivos é feita com base em uma estrutura que abrange sua definição, seu relacionamento com a sustentabilidade e uma proposta sobre formas de ser operacionalizado na relação, o que serve para orientar práticas avaliativas e de investimentos.
Dispositivo 1. SUPORTE OU APOIO INSTITUCIONAL
Definição: Suporte institucional (Core support) refere-se ao recurso voltado à manutenção e/ou fortalecimento da organização não destinados estritamente à operação de atividades específicas da iniciativa ou programa finalístico. Este investimento, no qual o overhead ou custos operacionais estão inseridos, são reconhecidos como recursos livres para os quais a organização tem o arbítrio de investir onde considerar mais significativo. Referências de literatura indicam que ao apoio institucional valores destinados a (a) gestão e custos gerais, a viabilizar a vida institucional da OSC e são compartilhados pelo conjunto de programas; (b) custos de captação destinados ao planejamento, solicitação e transações envolvidas no processo de mobilização de recursos[3]. Existe certa tendência, entre fundações, a definir faixas fixas de valores de investimento em overhead, entretanto um alerta lançado em artigo publicado pela Stanford Social Innovation Review (2016) [4] aponta que o tipo de organização e sua atividade tem clara relação com o valor dos custos administrativos, sendo não adequado assumir uma padronização aplicável a todos. Estudos semelhantes que exploram a realidade brasileira não estão disponíveis e este tema oferece um campo de necessária pesquisa.
Relação com sustentabilidade: Diz respeito a garantir que a estrutura organizacional (nível estratégico, tático e operacional), na qual estão alicerçados programas e projetos, será preservada sem a geração de passivos e, além, terá capacidade de se fortalecer via novos investimentos. Déficit no suporte institucional compromete a saúde financeira da organização, sua capacidade de sustentar sua equipe e operações e a viabilidade de manter sua entrega de resultados no médio e longo prazo.
Elementos do dispositivo a serem observados na relação ORG FIN – OSC:
- ORG FIN realiza o investimento em suporte institucional.
- ORG FIN tem política clara e conhecida de apoio institucional[5].
- Valor de suporte institucional recebido em relação ao valor de despesas organizacionais da OSC[6].
Dispositivo 2. CO-FINANCIAMENTOS E INVESTIMENTOS ALAVANCADOS
Definição: Co-financiamento é o engajamento, a partir de um financiador primário, de outros investidores para apoiar a iniciativa com recursos financeiros antes do seu início formal. Já investimentos alavancados são aqueles apoios recebidos pela iniciativa após seu início e ao longo do curso de sua implementação.
Relação com sustentabilidade: Garantir recursos para complementar o financiamento total da iniciativa ou ampliar a diversificação dos recursos para sua viabilidade. Co-financiamento e investimentos alavancados sintetizam a reconhecida necessidade de ter um conjunto amplo de parceiros financiadores ao redor de uma mesma iniciativa. Relacionam-se também com a possibilidade de alcançar a máxima potência de um programa ou projeto com a viabilização de todos os recursos necessários.
Elementos do dispositivo a serem observados na relação ORG FIN – OSC:
- ORG FIN realiza mobilização intencional e estratégica para viabilizar co-financiamento.
- ORG FIN realiza mobilização intencional e estratégica para viabilizar alavancagem.
- ORG FIN tem política ou abordagem clara para a viabilizacão de co-financiamento e alavancagem.
- % de valores de co-financiamento e alavancagem alcançados pela iniciativa.
Dispositivo 3. APOIO NÃO FINANCEIRO
Definição: Apoio não financeiro é definido como serviços oferecidos a organizações que recebem o financiamento (OSC) para fortalecer seu impacto social, resiliência organizacional ou sustentabilidade financeira[7]. Tal apoio ocorre na forma de consultoria estratégica, suporte na gestão financeira, estratégias de mobilização de recursos, acesso a redes, apoio à governança, mentoria de lideranças, orientação jurídica, bem como apoio a desafios de comunicação e tecnologia (anexo 1).
Relação com sustentabilidade: O apoio não financeiro cria melhores condições para o alcance dos resultados e propósito organizacional ao agregar ferramentas, abordagens estratégicas ou perspectivas sobre temas específicos que antes não estavam disponíveis no campo institucional.
Elementos do dispositivo a serem observados na relação ORG FIN – OSC[8]:
- Oferta de apoio não financeiro estruturado.
- Facilidade de acesso ao apoio não financeiro.
- Definição do apoio financeiro com base em necessidades organizacionais reconhecidas pelas OSCs como relevantes.
- Valor do investimento em apoio não financeiro[9].
Dispositivo 4. ESTRATÉGIAS DE SAÍDA
Definição: Diz respeito à existência de um plano elaborado entre ORG FIN e OSC que desenha alternativas de continuidade da iniciativa após o término do financiamento com o intuito de evitar impactos negativos, advindos do fim dos recursos financeiros, nos resultados produzidos ou na atividade organizacional. Idealmente estas estratégias devem ser consideradas desde o início da relação de parceria e não apenas ao seu final.
Relação com sustentabilidade: As estratégias de saída preparam a organização para lidar da melhor forma possível com a ausência futura do financiamento e do apoio provido por uma ORG FIN.
Elementos do dispositivo a serem observados na relação ORG FIN – OSC:
- Existência de um plano de saída formalmente estruturado e desenhado por ambas as partes.
- Plano construído pelas duas partes e não imposto pela ORG FIN.
- Disponibilidade de recursos para a viabilização do plano.
Dispositivo 5. MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO
Definição: Diz respeito à realização de processos disciplinados de acompanhamento da iniciativa e observação de aspectos a serem fortalecidos, substituídos ou criados. Pode englobar tanto processos estruturados de monitoramento e avaliação quanto estruturas informais, desde que criem condições para a reflexão e aprendizagem de todas as partes envolvidas.
Relação com sustentabilidade: A avaliação e o monitoramento são dispositivos para a aprendizagem organizacional que permitem a adequação da rota de resultados e o desenho de estratégias mais adequadas para a efetividade, eficiência e eficácia organizacional. Devem, entretanto, contar com a participação de todas as partes envolvidas no processo de reflexão e aprendizagem a partir das evidências recolhidas, de forma a terem repertório para decisões.
Elementos do dispositivo a serem observados na relação ORG FIN – OSC[10]:
- Existência de sistemas e /ou processos MEL (Monitoring, Evaluation and Learning).
- MEL acordado entre as duas partes.
- Resultados do MEL compartilhados e utilizados entre as duas partes.
Dispositivo 6. DURAÇÃO DA PARCERIA
Definição: A sustentabilidade relaciona-se com fazer-se perene no tempo e este dispositivo foca exatamente na relação temporal entre ORG FIN e OSC em torno de uma iniciativa. Busca conhecer se a duração da parceria foi adequada para alcançar determinados resultados e criar condições para sua permanência, bem como da organização. Entretanto se reconhece que não existe uma fórmula única a definir quanto tempo deve durar cada parceria para alcançar resultados perenes, sendo aspecto a ser observado caso a caso. Se observa que esta é o mais desafiado dispositivo entre os 6 sugeridos.
Relação com a sustentabilidade: Relaciona-se com a observação do tempo de financiamento como adequado para criar as condições para que resultados se instalem, estabilizem e sejam sustentáveis.
Operacionalização do conceito na avaliação da sustentabilidade:
- Tempo de duração das parcerias.
- Existência de ciclos de renovação da parceria.
- Percepção da adequação da duração da parceria para consolidar resultados sustentáveis.
CONCLUSÃO
Existe uma clara oportunidade de seguirmos um novo caminho na instalação e avaliação da sustentabilidade de organizações da sociedade civil, assumindo o prisma da relação entre ORG FIN e OSC na construção deste processo. O caminho a ser trilhado convida a validar e qualificar cada um dos dispositivos sugeridos, os quais – em si – são merecedoras de análises e textos específicos. Na perspectiva da Move Social, passamos a incorporar a análise destes dispositivos nas avaliações de programas que conduzimos e pretendemos reunir um repertório que permita fazer comparações e aprendizagens entre pares. Ao mesmo tempo, esperamos que a abordagem aqui proposta possa estimular investidores a refletir sobre sua postura nas relações de parceria e as consequências dela para a sustentabilidade de OSC.
Colaboradores do artigo
Este artigo foi elaborado com a colaboração de muitas pessoas, seja no debate das ideias propostas ou na revisão do conteúdo apresentado. São coautores à sua maneira e merecem aqui o reconhecimento.
Time Move Social:
Antonio Ribeiro, Arthur Da Hora, Beatriz Camelo, Bruno Novelli, Elis Alquezar, Gabriela Brettas, Igor Braz, Juliana Moraes, Max Gasparini, Rodrigo Petrucelli, Patrícia Carla, Tania Crespo, Thais Fantazia, Walquiria Tiburcio.
Colabores externos:
Carlos Pignatari, Fábio Deboni, Iara Rolnik
E os envolvidos na C&A Foundation Overall Effective Evaluation (2019) que em muito revisaram e criticaram as reflexões sobre sustentabilidade presentes em relatórios parciais apresentados pela Move para a referida avaliação: Eric Abitbol (Universalia), João Martinho e Lee Risby (Laudes Foundation).
ANEXO 1
Mapa das Categorias de Suporte Não Financeiro realizado pelo investidor
Fonte: A practical guide to adding value through non-financial support. European Venture Philanthropy Association, 2015
NOTAS
[1] https://www.oecd.org/dac/evaluation/daccriteriaforevaluatingdevelopmentassistance.htm
[2] https://www.universalia.com/en
[3] National Council of Non-profits (Mis)understanding Overhead. In: shorturl.at/kovP9
[4] Eckhart-Queenan, J., Etzel, M, Prasad,S. Pays-what-it-takes Philanthropy. Stanford Social Innovation Review, Summer, 2016. https://ssir.org/up_for_debate/article/pay_what_it_takes_philanthropy#
[5] A política de apoio institucional deve versar sobre: condições e usos, faixas de valores, considerações sobre a relação entre tipo de OSC e faixa de valores.
[6] Uma alternativa em avaliações é capturar a percepção da OSC sobre a adequação da faixa de valor recebido para as necessidades de despesas organizacionais.
[7] European Venture Philanthropy Association, A practical guide to adding value through non-financial support, 2015. Disponível em https://evpa.eu.com/knowledge-centre/publications/adding-value-through-non-financial-support-a-practical-guide
[8] Nota para avaliadores: avaliações podem buscar conhecer a percepção de agregação de valor do apoio não financeiro para o fortalecimento da organização.
[9] Se reconhece que o valor investido nem sempre é de fácil mensuração e deve ser observado quando possível.
[10] A percepção da agregação de valor do MEL para a iniciativa pode ser foco da processos avaliativos.